quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Os Lamentos do Bom Selvagem I: A Miséria em Meio ao Nada



   Logo no início do livro "Do Contrato Social" de Jean Jacques-Rousseau temos a seguinte sentença de inspiração romântica: "O homem nasceu livre, porém, por toda parte, encontra-se sob os grilhões." Temos aqui a frase e o autor das grandes tribulações políticas e culturais que se arrastam desde, pelo menos, o século XVIII. E digo isso pois a frase e o autor se assentam em um erro de compreensão antropológica fundamental, um feitiço, que poderia ser desfeito com um pouco mais de crédito na experiência nossa de cada dia.

   Existe aqui implícita neste pequeno parágrafo uma das razões fundamentais que separam os dois iluminismo que conhecemos, que são o francês e o britânico. Ambos se fundam em interpretações distintas do ser humano, e isso explica, também, as diferenças fundamentais entre as duas culturas e os rumos que estas nações tomaram ao longo da história. Aqui o empreendimento comum de considerar ambas as revoluções sob uma mesma ótica só é possível às custas de um tremendo sacrifício da razão.   

   Podemos afirmar que entre as diferenças se encontram, do lado britânico, um esclarecimento permeado de um ceticismo que descreve de maneira mais empírica a condição humana, levando em consideração suas inclinações, paixões e erros fundamentais - a limitação dos poderes dos reis durante a Revolução Gloriosa em 1688 objetiva bem este espírito cético -, enquanto que, do lado francês, um romantismo mais deslumbrado com a razão e com a possibilidade da libertação do julgo das instituições, levou a um otimismo infinito que,  no fim do dia, resultou em perda de liberdade e em cabeças rolando.

   A intenção de Rousseau em afirmar a natureza intrinsecamente boa do homem primitivo - aquele existente antes da sociedade -, junto com a ideia de que a sociedade a corrompia, estava voltada à afirmação de que o mal da humanidade era resultante das "imposições da sociedade", imposições que vinham nas formas do costume, da Igreja, da monarquia e das instituições criadas ao longo dos séculos, o que acabava por hierarquizar a sociedade e, consequentemente, oprimi-la. É óbvio que as relações entre causa e efeito estabelecidas aqui são forçadas por aquele costume arraigado de julgar as partes pelo todo, já que a França pré-revolução não era propriamente uma França feliz - com aumentos arbitrários de impostos empreendidos pelo rei, um histórico recente de absolutismo monárquico, abrandado sim na segunda metade do século XVIII. No entanto tão pouco oferecia Rousseau um alento à miséria com a sua doutrina; fato é que sob o impulso da doutrina do "bom selvagem" a miséria foi profundamente agravada.   

   O pensamento conservador britânico, na pessoa de Edmund Burke - que chamava Rousseau de "o filósofo da vaidade" - detectou muito bem os pontos falhos da Revolução Francesa através de uma percepção profundamente clara do momento - digamos até que possuída de uma intuição divinatória -, por ver na eliminação brutal dos potos de referência culturais e na abolição das instituições a destruição das barreiras de contenção que impediam a invasão da barbárie. Tais barreiras eram tanto barreiras físicas, como não físicas; visíveis e invisíveis; escritas e não escritas. Entre estas barreiras encontramos a tradição e o "guarda-roupa da imaginação moral", a partir do qual podemos acessar todo um conjunto de experiências obtidas nas gerações anteriores cujas reflexões, costumes e tradições são fundamentais para a própria compreensão do "nós", assim como permeadas de esquemas de ação e até mesmo de fracassos que oferecem um norte para soluções a serem apresentadas diante de problemas presentes. Assim a recorrência ao "guarda-roupa da imaginação moral" seria um depósito de informações e costumes, como a confissão de uma superioridade do poder e sabedoria do "nós" em detrimento de uma atitude solipsista que tenderia a nivelar toda a realidade ao universo limitado do "eu". 

   Contudo a imaginação idílica roussoniana que estava voltada para a abolição dos costumes gerou o vício intelectual que consiste em considerar que um mundo bom é um mundo sem passado, sem experiência, sem algo a ser conservado, dando lugar às falaciosas utopias que buscam destruir o mundo presente em nome de um paraíso futuro. Mas este "pensamento de ruptura" é algo que tende, ao contrário do que afirma, não destruir a tradição, mas apenas substitui-la por uma tradição de rupturas onde o imperativo categórico que se estabelece cria algo como um "segundo homem", alguém cuja mudança e a impermanência tornam-se, antes de tudo, a postura mental que confessa que a única coisa a permanecer é a mudança e a impermanência, levando o revolucionário a saltar de revolução em revolução tal como faria um tradicional heraclitiano convicto. Contudo a dinâmica do processo, que é excitante porque centrada em um solipsismo dinâmico do eu, ignora as bases próprias em que uma sociedade encontra-se assentada; bases estas cuja subtração levaria apenas à criação de um inferno indescritível. E é justamente aqui que entramos nas consideração da natureza humana ignoradas por Rousseau. 

   Chegamos neste ponto ao cume de um processo de reflexão que não pode ser ignorado para quem quer que deseja considerar a dinâmica da história ou mesmo o processo de formação e transformação das sociedades e da civilização. Tal reflexão demanda a compreensão de que a possibilidade da sobrevivência humana jamais pode se dar sobre uma base solipsista, já que, primeiramente, a continuidade da raça humana só é possível mediante associações entre "eus", sendo a primeira delas a associação entre um homem e uma mulher, e, também - o que é de fundamental importância -, na limitação da liberdade demandada por necessidades de sobrevivência. Ou seja: o solipsismo é o contrário de sociedade e humanidade; ainda mais: o solipsismo é a anti-sociedade e anti-humanidade. 

   Todas essas coisas saltam aos olhos ao considerar a complexidade de formação de sociedade, apesar de serem negadas pelos românticos que estabelecem uma relação estritamente sentimental com o mundo. É óbvio que nas bases de qualquer sociedade importante encontraremos leis, costumes, religiões, limitações, hierarquias de comando e de produção, exércitos, produtores, intelectuais, sacerdotes, sistemas de governo, governadores, família etc. A existência dessas coisas que chamamos de instituições eram e são fundamentais para a fundação, manutenção, existência e permanência de uma sociedade, e, consequentemente, dos indivíduos dentro dela, desempenhando cada qual, ao seu modo, o seu sacerdócio em favor dos "eus" em benefício também de si mesmos. 

   A tendência do pensamento contemporâneo na camada dos "bem pensantes", costumeiramente ignora que uma sociedade não se origina como geração espontânea, e que nem se trata de um dado evidente da natureza biológica, e nem mesmo é algo que sempre esteve aí. Não! A sociedade é o resultado de confissões, sacrifícios e de uma lenta  construção fundada em valores, e seus modelos são possíveis por causa de um determinado estado de espírito, ao contrário do surgimento de uma colméia, cujas possibilidades estão incrustadas na natureza das abelhas. Por isso podemos compreender que a sociedade é, antes de tudo, um cultivo do espírito e uma tentativa de supressão de vários dados da natureza, e a harmonização sintética dela às nossas necessidades.  Contudo quando se diz "necessidades" não se evidencia de maneira plena o que queremos dizer ao falar da sociedades, já que por "necessidades" não nos referimos somente às necessidades físicas, mas também à permanência da vida que, entre outras coisas, depende da limitação dos desejos, ainda que os meios de alçar objetivos determinados mudem de um tipo de sociedade para outra. 

   A limitação dos desejos é a base fundamental do convívio humano. O exemplo disso é que não há sociedade humana que não possuam tabus relacionados à sexualidade, principalmente o tabu do incesto - como nos afirma Freud e Lévi-Strauss. Também estendemos a outras áreas a ideia de limitação dos desejos, como nas relações de propriedade, já que as limitações do desejo de posses materiais são fundamentais para o convívio humano, limitação que se destina à proteção integral da propriedade, não dando margens para a legitimação do roubo. As limitações da ira, que possibilitam a estabilidade social e o convívio sem o qual tudo degeneraria perseguições, carnificinas e no estabelecimento do poder indefensável e cruel do mais forte. Também a limitação da preguiça, o que, atuante na cultura como um código moral, traz a tona a compreensão de que todo o trabalho é, mesmo que inconscientemente, a realização de uma saudável cooperação social - principalmente e imediatamente familiar -, sem a qual teríamos o estabelecimento geral da ideia de tirania sobre o trabalho alheio; por isso a ética do trabalho e a limitação do desejo do gozo do descanso correspondem a uma compreensão de justiça e da constatação de que a sobrevivência é um bem obtido através do esforço e do sacrifício. 

   Não é por menos do que a tentativa de limitação dos desejos - o que consequentemente resulta em uma limitação da liberdade - que as várias instituições existem, o que nos leva a outra conclusão, a conclusão de que o que fundamenta a existência das instituições e hierarquias é a sobrevivência da sociedade, cujas possibilidades estão no livre curso das relações justas. Tal consciência está estampada como um memorial na literatura, na história, nas tradições, nas leis, na religião, e que permanecem como bastiões contra a corrosão liderada pelos bárbaros, já que as sociedades, a justiça e as tradições que fomentam a sociedade não existem senão por causa de um exercício constante de reflexão e acão para manter vivos tais valores. E é justamente aqui, onde vemos a complexidade das relações humanas, que a sentença infame de Rousseau - romântica e abstratista por todos os lados - cai como um fruto podre da árvore dos tempos sombrios. 

   Não foi por acaso que movimentos revolucionários - cuja inspiração se encontra na tradição francesa influenciada por Rousseau -, apregoando a liberdade dos homens os fez amargar sob o julgo de ditaduras sangrentas, já que com o ímpeto demolidor dos revolucionário as instituições, a religião, as leis, os governos estabelecidos e todos aqueles limitadores da liberdade acabaram na lata do lixo da história, resultando em uma concentração de poder ilimitado daqueles grupos mais organizados e com maior poder de controle da sociedade, que, invariavelmente, eram formados por aqueles que apregoavam a ideologia infame do "bom-selvagem" - assim é a história da revolução francesa, da revolução blochevique, da revolução nazista, maoísta e da revolução iraniana. Nenhuma destas revoluções se furtaram do otimismo antropológico de Rousseau, e nem mesmo constituem em exceções a esta regra, já que cada um desses grupos acreditavam em forças, grupos e instituições que impediam a chegada de um futuro utópico onde reinaria a paz e a justiça no próprio mundo - e consequentemente nomeavam também os bodes expiatórios contras os quais toda a culpa da não chagada do futuro utópico desaguava, sejam eles os burgueses, os kulács, os judeus, os imperialistas, a classe-média etc. 

   Com isso, quanto mais liberdades, quanto mais instituições destruídas, quanto mais a moral era substituída pela ideologia, quanto mais as religiões iam perdendo a sua influência e quanto mais as instâncias que limitavam as liberdade desapareciam, mais o povo ia se aproximando de um futuro tenebroso, onde o voluntarismo, a arbitrariedade, a seleção de bodes expiatórios se estabeleciam desenfreadamente, provando a capacidade de felicidade que um bom selvagem poderia adquirir na medida em que ia se livrando de suas opressões mediadas por essas mesmíssimas instituições.

OBS: Na imagem o famoso quadro símbolo da revolução francesa onde a liberdade guia o povo - para onde, a história já nos mostrou. 

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