terça-feira, 10 de novembro de 2015

O Espírito e a Vida



   A ruína material de um povo é precedida, também, de uma ruína moral (seja do povo, seja daqueles que o afligem), mas, antes de tudo, a ruína moral tem por base uma ruína espiritual: trata-se de uma degeneração de valores e princípios que afeta desde a esfera privada, estabelecendo seus tentáculos nos mais variados setores da vida pública.

   Não estou aqui como quem faz um prosélito ou como quem se aproveita de sua situação (sou pastor batista) para lançar apelos conversionistas, como quem tira vantagem da ruína moral e material do momento para indicar um caminho, por exemplo, em direção à Igreja que pastoreio. Aquilo que pretendo discorrer aqui tem validação na vida prática e mesmo nas reflexões filosóficas, além de teológicas, e em várias outras ciências. Tendo explicado isso, sigamos ao que interessa.

   Quando falamos sobre o campo do espírito, estamos a falar de coisas profundas e fundamentais da vida humana, pois é no espírito humano onde reside uma estrutura cujo fundamento só pode ser real quando concreto, e ser concreto é ser fundamental, assim como verdadeiramente real. Falamos de sentido, significado, destino e razão: coisas alheias à vida moderna que ficou cerrada no campo do materialismo, não conseguindo acessar outros campos da existência além daquilo que é percebido pelos cinco sentidos. Por isso a vida moderna, no intuito de oferecer liberdade para a humanidade, com o seu materialismo brutal, furtou, ao mesmo tempo, o campo do espírito, fazendo com que a vida fosse cerrada em um círculo onde a liberdade humana tornou-se uma mera ilusão da mente. Segundo expressões da teologia Hindu, fomos cerrados na dimensão de Maya (a ilusão da existência), sendo impossível romper o Samsara (a dimensão da vida dominada pelas relações de causa e efeito, o mundo da existência visível), perdendo a dimensão de Brahmam (O Deus Criador onde inexistem as relação de causa e efeito, por ser ele mesmo, o Brahmam, o Absoluto, a perfeita realidade e em quem, por meio da participação, entramos na vida Absoluta livre das confusões e ilusões desta vida). Nas terminologias da teologia cristã, fomos cerrados na vida regida pela carne (sarx, no grego - Romanos 7), onde, isolada do seu sentido espiritual, tende a terrestrializar o pensamento humano, fomentando a ilusão de que a dimensão visível é a única dimensão possível, o que acaba, por consequência, por transformar o homem em uma besta feroz e inimiga de Deus (Apocalipse 12 e 18), já que afastada do seu sentido último que é o Deus Criador dos Céus e da Terra (Atos dos Apóstolos 17:28) e que é a vida de todas as coisas. O homem carnal, ou o indivíduo que vive preso ao Samsara,  por tanto, é regido pelo império da morte, desespero, tendo que suportar o peso enlouquecedor de toda existência em suas costas sem nenhum apoio divino.

   É aqui que, desde as questões mínimas da vida, as tradições filosóficas e teológicas mais antigas buscaram traduzir aquilo que podemos chamar de nosso sentido da vida. Digo coisas mínimas porque Deus como o Sentido Último da vida é reconhecido desde o senso comum, quando, por exemplo, se fala do bem e o mal, da verdade e da mentira, de coisas, em suma, que não seriam o que são senão acompanhadas por um sentido eterno, tal como o amor, a eternidade, o desejo por uma resposta definitiva para a vida, a vontade e necessidade de certezas - e estar certo em um momento é gravar para sempre o sentido definitivo e eterno de uma verdade -, o desejo de conter tribulações corriqueiras, substituindo-as por uma paz definitiva e duradoura, o desejo de superar, de uma ver por todas, alguma dificuldade. Tal vez não percebamos, mas o senso de eternidade é algo que nos acompanha dia-a-dia, como diz o pregador no livro de Eclesiastes (3:11), afirmando que Deus colocou a eternidade no coração dos homens. Aqui podemos falar que a eternidade implantada no coração do homem é justamente o seu desejo por ordem, por felicidade, por uma vida perfeita, pela Verdade, pela permanência daquilo que é bom e pela aniquilação daquilo que é mal, ou a própria vontade de potência ou abundância, coroadas pelo assentamento destas vontades em bases justas ou corretas. Trata-se de um desejo humano natural por uma Ordem superior e transcendente que foi feita para ele, sendo o homem também feito para esta Ordem (como diria Russel Kirk); e uma vez não satisfeito este desejo por ordem o homem tende a mergulhar em uma apatia e tédio absolutos, uma ruína e fracasso de manter a vida ligada ao significado eterno que é a razão de todas as coisas e da nossa própria permanência. Fora disso, podemos dizer, o homem perde a razão de sua existência e a compreensão de seu lugar no cosmos e na vida, se sentindo um ser estranho a eles.

   Na tradição cristã a este tédio foi dado o nome de acídia, o terrível pecado que está fundado na ausência de esperança, na indiferença a tudo, o que leva o homem a um estado de letargia onde nada mais faz sentido, entregando-se, em busca de um sentido, aos deleites desta vida, por ter lançado fora a esperança o sentido superior e o assentamento da vida em uma razão espiritual. Após o tédio, abominando a natureza humana a falta de sentido, o espírito do homem tende a ser terrestrializado, e o que uma hora foi uma esperança e fé inabaláveis no Deus Criador de Tudo, nesta razão espiritual que está acima das circunstâncias, das tentações, das paixões e da mesquinhez, torna-se um impulso incontrolável de fabricar ídolos afim de preencher o vazio espiritual de sentido, onde o dinheiro, a política, os círculos de amizades, as convenções, a moral, a ciência, o raciocínio humano divorciados da Base Esterna da Realidade, os poderes desta vida, as pessoas, as tradições mortas, o casamento, os filhos e tudo quanto, servem como substitutos ao Deus que tudo Criou, rebaixando o homem a um servilismo idolátrico a coisas que, em si mesmas, longe do Deus ou o Sentido Absoluto, são insuficientes para qualquer pessoa. O homem fica preso ao ciclo desta existência (o Samsara) do qual não consegue romper, sendo impossível a experiência, também, de liberdade, a qual é possível apenas por meio da participação em Brahman, ou o Absoluto Deus.

   É por isso que a vida moderna, tendo se focado obsessivamente na vida material do homem, entendendo que é daqui que se deve partir se se deseja preencher o vazio da existência, chegando a raciocinar que os êxitos materiais são os êxitos supremos, entendendo até que a moralidade ou imoralidade são reflexos do aceso ou não às riquezas, e não o reflexo da situação do universo de significado de um, da riqueza ou pobreza da vida espiritual ou moral, não pode oferecer um antídoto para a falta de sentido que é como um vácuo que tende a destruir tudo. Na verdade a vida moderna não é uma solução, mas um sintoma de desespero, do desespero gerado pelo vácuo espiritual que uma vez foi gerado quando Deus, ou as leis eternas foram expulsos da vida pública e privada. Vemos com o declínio da vida espiritual na Inglaterra a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, não por mera coincidência, inteiramente relacionado com o declínio dos valores matrimoniais; a explosão dos números de filhos ilegítimos; o relativismo cultural que prende a camada mais pobre da sociedade em seu próprio gueto culturalmente limitado - já que tudo é válido culturalmente -, não dando acesso para esta camada a alta cultura que daria possibilidades para ver além das limitações do gueto; a degeneração do gosto; das artes; da educação; das políticas públicas que em nome do "não preconceito", já deixou de emitir juízos de valores na hora de acusar algum estrangeiro ou negro, ou de um branco pobre e viciado em drogas, de uma violências que eles, de fato, estavam praticando, afim de não fazer pesar o fardo sobre os oprimidos etc.

   É por isso que a desordem social, antes de tudo, trata-se de uma desordem das almas, de um afastamento da razão espiritual do homem que poderia dar acesso a ele ao sentido da vida, das relações humanas, das instituições, do trabalho e de todas aquelas coisas praticadas pelos homens para os homens. Isso tudo paira acima das suspeitas niilistas para as quais é o homem isolado em seu próprio universo mental que cria o sentido das vida. Só que experimentou a enfadonha tarefa de ter que criar um sentido para as coisas, dispensado a herança das gerações passadas, como se o ontem nada valesse, sabe o quão terrível, sofrível e ingrata é a tarefa de ter que criar algo a partir do nada, para que depois descubramos que o ponto de chegada é justamente aquele negado no início da emancipação ou da negação das tradições. A criação absoluta - já diz a sabedoria bíblica - é algo possível somente a Deus. Ter que criar uma ordem e um sentido permanente para a vida - e não participar de uma ordem criada - é uma contradição de termos, e uma impossibilidade pura e simples, pois se homens com base em suas autoridades limitada devem criar uma ordem, porque ela deve ser obedecida por um homem com igual capacidade de também criar uma outra ordem? Não seria o reconhecimento comum de uma lei eterna e justa por si só - acima ou além do homem - que fariam os homens se sujeitarem como quem se sujeita a algo verdadeiro, ou como quem faz isso, ainda que a lei trate-se de uma lei humana, em nome de um Bem Maior que beneficiaria todos os homens?

   Por tanto as verdades permanentes, o sentido transcendental a reger a vida pública e privada são elementos fundamentais que possibilitam a ordem das almas, e com isso a ordem pública. Se as pessoas não descobriram que um mero contrato ou um mero aglutinado de opiniões e de consensos não podem guiar a alma humana, é porque não entendem muito bem o que é uma verdade, muito menos um contrato, e menos ainda a validade de uma opinião, tendo que entender que um contrato é apenas o resultado de uma disposição espiritual interior entre duas pessoas, cujo comprometimento poderia levar às mais insanas bizarrices se algo invisível e eterno não estivesse regendo as consciências e os espíritos no universo do bem e do mal, do certo e do errado, do sim e do não, da validade do comprometimento e do não comprometimento, da verdade e da mentira, de coisas que não são deduzidas da matéria pela matéria, mas que, sendo invisíveis, pertencem a um universo de compreensão superior, acessíveis à consciência individual e que, reconhecidos, podem ordenar as nossas vidas e toda a realidade material, e que não reconhecidas pode podem levá-las ao caos - e o nosso mundo nos fornece provas disso o tempo todo.

   Por isso, no campo do real a vida ética, moral, política, familiar, do trabalho necessitam de, digamos, um fundamento não fundamentado, de uma base não embasada, de um princípio absoluto cuja existência é a própria prova de sua existência, e que prova para todos nós que dele necessitamos, já que o homem e a vida, isolados em si mesmos nada podem vislumbrar no horizonte, já que tudo aquilo que, na perspectiva humana, existe no horizonte é pó, o pó que só através do Espírito Eterno e Santo pode ser convertido em vida. 

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