Hoje em dia incrivelmente
na questão da culpa congênita os psicanalistas conseguem ser mais ortodoxos do
que os negacionistas da herança da culpa como algo que constitui a realidade do
pecado original. Andrés Torres Queiruga, o padre universalista, recentemente
trouxe a tona a pergunta que desde os socinianos embebe os racionalistas:
"Como posso ser culpado por algo que não cometi?".
P.S: Desde os socinianos essa questão no
Ocidente vem sendo tratada com afinco; daí passando para os racionalistas como
Espinoza, e entrando na Teologia liberal de Kant, Schleiermacher, Ritsch, a
questão não cansa de sofrer atualizações.
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É bom pontuar que não estou
afirmando aqui de forma alguma uma simetria entre psicanálise a doutrina cristã
do pecado original - porque essa simetria não existe. Estou dizendo que a noção
de uma percepção de culpa congênita é mais certa do que o absurdo de afirmar
uma simples geração que conta com uma defecção - que deve ser apenas física, ou
da parte inferior da alma - sem culpa.
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Não existe participação no
pecado original sem ato - pois não existe humanidade apenas do prisma da
potência (humanidade que nasce sem potência para o bem sobrenatural). Em
primeiro lugar, poderíamos começar por ser guiados pelo nome próprio do
primeiro homem que é apresentado na Bíblia. O significado do nome hebraico Adão
é "Humanidade", tanto é que o termo "filhas dos homens" que
vai aparecer em Gn 6 é 'banotha'adam". Sempre foi compreendido que o ato
de Adão, como para Agostinho, era um ato da humanidade, do velho homem como um
todo. Podemos até considerar a primeira parte de Gn apenas pelo prisma da
linguagem mitológica, mas a questão é que Agostinho diz que Jesus foi pregado
na "árvore" para devolver o que não tinha roubado, pagando pelo
delito do Adão que tinha assaltado a árvore, trazendo a redenção e o perdão dos
pecados de todos os homens -
tanto do pecado original como dos pecados atuais. Hoje essa questão agostiniana
está sendo questionada, mas o fato é que alguns estão colocando os efeitos do
pecado de Adão sobre as pessoas, como a morte, sem que elas tenham culpa
alguma, podendo ser condenadas por isso.
Mas pare efeitos de uma
explicação, o pecado original também implica na corrupção moral, justamente por
causa da corrupção da vontade. Ora, se há corrupção da vontade é impossível que
não haja culpa congênita, pois alguém que não pode realizar tal bem não pode
ser moralmente bom e já não é bom. A negação da depravação total é a razão pela qual o cristianismo ortodoxo não consegue explicar porque um simples vício de
natureza pode tornar alguém condenável, se, por exemplo, a regeneração batismal
não implica em regeneração física, mas moral e espiritual. Quem deve provar o
ônus é quem afirma o contrário.
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Muitos ignoram o fato de
que a finalidade sobrenatural do homem continua sobre ele no estado de
corrupção, sem que ele a possa atingir. Diferentemente do primeiro homem que já
estava no gozo desse fim. A questão do pecado não pode ser esgotado apenas pelo
prisma jurídico aqui, mas envolve uma discussão de uma escala ontológica de
onde se segue uma conclusão axiológica (valorativa). O homem deve existir em
ato, mas nunca cumpre a finalidade sobrenatural para a qual está posto, sem a
potência sobrenatural correspondente da vontade para realizar tal finalidade -
o que implica em um vício moral e, por tanto, em culpa. O homem não pode
realizar o seu próprio fim, e isso envolve culpa. O homem não possui poder de
auto-determinação em direção à santidade, o que faz um escravo do pecado e
submisso a ele. É interessante notar que na descrição da psicologia infantil de
Agostinho no "Confissões" ele já ache nas crianças materialidade do
pecado, e é impossível que, do prisma da vontade humana, que a ação valorativa,
por mínima que seja, em quem quer que seja e de que idade for. O homem não regenerado
não pode se capaz do bem e isso induz à noção já de uma culpa congênita, porque
já nasce sendo o que é, inclinado para o mal e, por tanto, pecaminoso.
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A confusão desastrosa entre
a redução da potência ao ato de coisas meramente físicas e morais resulta em
uma transposição indevida da noção do ser para a noção do ser devido.
O fato de um ferimento de
um tronco de árvore obstar a produção dos frutos não implica em uma falha
moral. Da mesma forma, um homem que não possui as pernas estar diante de um incêndio
e não poder atualizar o ato de salvar um bebê em perigo não implica em ausência
do ser devido, pois se a sua vontade estivesse intacta, nada obstaria a
realização desse bem se ele não fosse impedido disso por uma mera privação
física (ausência de ser). Privação física (de ser) não é o mesmo que privação
moral (de ser devido).
O pecado de Adão gera os
dois males, a ausência de ser e a ausência do ser devido, e a falha moral que
reside na ausência do ser devido é basicamente uma falha da vontade de o homem
não querer o bem retamente segundo a sua finalidade sobrenatural, ainda que ele
realize um bem exterior semelhante ao bem requerido pelo ser devido, não
atingindo o ser devido.
A questão aqui é que o
homem não pode querer o bem sobrenatural, não tem potência para isso, ainda que
possua as faculdades para isso, e ainda é manchado pela inclinação ao mal, que
é o mal, e nisso consiste o seu estado de culpa.
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No entanto, as noções
apresentadas acima explicam a razão da condenabilidade do homem em função do
pecado de Adão, que acaba privando a posteridade do ser devido, assim como
trazendo defecção do ser, mas não explicam a imputação da culpa de Adão sobre a
humanidade, ainda que se explique a culpa congênita.
A resposta à questão da
imputação podem ser duas:
1) A imputação se dá como
se dá nos crimes de lesa-majestade, onde o pecado o crime de um representante é
imputado sobre a sua família. E considerando a dignidade de Deus, não é
inconcebível que o pecado de Adão acarrete não só em mal no ser, mas na
imputação da culpa de tal crime aos descendentes deste, e que deve exigir
reparação à altura.
2) Adão como o cabeça da
humanidade é também aquele de quem descende o homem. Ora, em todos há a marca
da mortalidade desde que nascem, sendo a sujeição à mortalidade a pena do
pecado. Ora, não onde há mortalidade há pena e onde há pena há necessariamente
culpa. Mesmo em crianças há penalidade transmitida e, por tanto, culpa, não
culpa devido aos pecados atuais, já que crianças não estão de completa posse do
livre-arbítrio, embora haja imputação de culpa por causa da marca da pena
transmitida em virtude da transmissão do pecado original.
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Não há uma natureza neutra,
que nem é boa e nem má, pois toda ontologia é axiológica, e no caso do homem, a
sua corrupção, e a mancha da morte o faz naturalmente portador de uma pena,
pena em um ser moral, e não há pena em um ser moral, no que toca a mancha do
pecado, onde não há culpa.
Da natureza da pena pode
ser considerada como que dividida por duas classes: 1) a pena enquanto pena
física, donde provém toda imperfeição não só do homem, mas do mundo (Gn 3:18);
2) e a pena enquanto pena espiritual, que é possível ver da defecção tanto da
vontade quando do intelecto (parte superior da alma).
O pecado original é a fonte
de todas as defecções e, por consequência, tais defecções são mal de pena, já
que é privatio boni com o qual o homem já nasce por um justo
juízo, carecendo tanto de justiça quanto santidade pelos quais se faz aprazível
a Deus. Carecendo de tais dons o homem jamais atinge o fim espiritual para o
qual foi criado; e se não atinge está sob juízo, necessitando de salvação.
O estado
de natureza viciado é destituído do bem sobrenatural pelo qual o homem
se torna agradável a Deus. E tendo recebido uma natureza corrompida, e privado
do dom sobrenatural, lhe é impossível a salvação, estando por privação do bem,
marcado pela mortalidade que é pena sobre o pecado; e, no que toca a mancha do
pecado, não há pena onde não há culpa.
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Quanto à questão de que o homem é apenas
sujeito à possibilidade do pecado porque efetivamente sujeito à morte, e que
por isso possui potência para o mal, é necessário algumas considerações:
Primeiro: é tecnicamente incorreto
dizer que alguém tem potência para o mal. O correto seria dizer que é impotente
para o bem para o qual ele está ordenado - e isso já determina muita coisa, incluindo a culpabilidade.
Segundo: Ter em si a pena da morte em um
ser que é moral, privado do dom sobrenatural da justiça, é ter em si pena - e é
impossível uma pena sem uma culpa correspondente, justamente porque o homem é o
que é: impotente para o bem e corrompido portanto, estando abaixo do que
deveria ser, privado da justiça original e do ser devido.
Terceiro: O homem não é condenável
apenas pelos pecados atuais - gerados ação moralmente má - , caso contrário
bebês não seriam carentes de redenção.
Quarto: Não existe uma relação
necessária entre a sujeição à morte física e o ato do pecado, caso contrário a
morte de Cristo carregaria infalivelmente junto a si o pecado de Cristo, o que
é absurdo. O estar "sujeito à morte", no caso de Cristo, deve ser entendido
paralelamente com a sua potência absoluta para o bem. Nesse sentido ele é
impecável.
Quinto: Mas a impecabilidade não pode se
dar no caso do homem comum, pois o pecado seria absolutamente resistível caso
ele fosse sujeito apenas às defecções físicas da morte, mas tivesse infensa a
faculdade da vontade. Não há exemplos de resistência ao mal apenas por pressão
da defecção da morte, já que além do mal no ser o homem carrega a defecção da
vontade, o que o priva também do ser devido. São as penas naturais e
espirituais que estão presentes no homem, e onde há pena, há culpa, tendo o
homem aqui a necessidade de salvação.
Sexto: Se negarmos que o homem está
infenso na faculdade da vontade, teremos que abraçar necessariamente o
pelagianismo e tornar não absolutamente necessária a necessidade do dom da
graça na regeneração da vontade.
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