domingo, 13 de junho de 2021

Francis Turretini e a Questão do Perdão dos Pecados Futuros: Ou: A Distinção entre a Virtualidade e a Atualidade da Remissão dos Pecados

XVII. Terceira proposição: “A remissão se estende inteiramente a todos os pecados dos crentes, não importa de que gênero sejam, sejam futuros, pretéritos e presentes, mas em sua própria ordem”. Esta questão é movida com respeito os pecados aos pecados futuros - são também remitidos ao mesmo tempo e imediatamente com os pecados pretéritos e presentes? Pois há alguns, inclusive dentre nossos teólogos de grande reputação, que acreditam que, na justificação do pecador, todos os seus pecados (os futuros juntamente com os pretéritos) são ao mesmo tempo e imediatamente remitidos, tanto porque a justiça de Cristo, que é o fundamento de nossa justificação, é totalmente (por maior que seja) imputada imediatamente e ao mesmo tempo a nós, e porque a justificação não deve deixar lugar à condenação (Rm 8.1). Aliás, sendo justificados, eles têm paz com Deus (Rm 5.1) e são chamados bem-aventurados (SI 32.1). Não se poderia dizer tal coisa se ainda pudessem viver sujeitos à condenação em virtude dos pecados futuros não remitidos.

XVIII. Cremos que a dificuldade pode ser vencida mediante uma distinção. Não se pode dizer que todos os pecados (sejam futuros ou pretéritos) são remitidos ao mesmo tempo e de uma vez formal e explicitamente, porque, como não são acidentes de algo não existente, assim, enquanto o pecado não existe, a ele não se deve nenhuma punição; e, já que ela não lhe é devida, ele não pode ser remitido (como uma dívida ainda não contraída não pode ser cancelada). Além disso, para a remissão do pecado se requer uma confissão e arrependimento dele, o que não se pode fazer a menos que ele tenha sido cometido. Daí nos ser ordenado que busquemos a remissão de pecados a cada dia, o que tem de ser aplicado aos pecados cometidos, e não antecipar sua perpetração. Mas como, na justificação, a justiça de Cristo nos é aplicada (que é o fundamento sobre o qual repousa a remissão de todos os nossos pecados) e como, com base na aliança da graça, Deus promete que não se lembrará de nossos pecados, nada nos impede de dizer que, neste sentido, os pecados são remitidos eminente e virtualmente, porque, na justiça de Cristo, a nós imputada, está o fundamento dessa remissão. Assim, todos os nossos pecados são remitidos por Deus, quer pretéritos, presentes ou futuros, mas levando-se em conta o tempo em que são cometidos, de modo que os pretéritos e presentes são realmente remitidos e os futuros, quando forem cometidos, mui certamente serão remitidos segundo a promessa de Deus. Assim, considerando-se que o estado da justificação permanece imperturbável, a aceitação da pessoa permanece ininterrupta e a remissão geral dos pecados já cometidos, os pecados seguintes e futuros, quanto à absolvição particular, realmente não são perdoados antes de sua comissão, aliás, antes que haja arrependimento por eles, quer geral ou particularmente.

XIX. Confesso que, se considerarmos o propósito eterno de Deus no qual todas as coisas, mesmo as futuras, para Deus são como que presentes (At 15.18) e o mérito c a aquisição de Cristo, que ofereceu a Deus um resgate (lyiron) perfeitamente suficiente pela expiação de todos os nossos pecados, de modo que, quanto à promessa dada por Deus na aliança da graça concernente à sua remissão, pode-se dizer que esta remissão sob esta relação (schesel) se estende a todos os pecados, quer pretéritos ou futuros. Mas se a remissão real for considerada em si mesma, a qual é feita por uma intimação da sentença absolvidora no coração do crente e penitente, ela pode referir-se somente aos pecados já cometidos. E, assim, para remover a culpa de pecados subsequentes, requer-se aí uma aplicação particular da remissão não só quanto ao senso e certeza da remissão, mas também quanto ao próprio perdão verdadeiro e real.

XX. Como a pessoa cujos pecados são perdoados pode ser considerada, ou quanto ao estado de graça (em que ela é constituída pela justificação), ou quanto aos atos particulares (que porventura cometa posteriormente), assim a remissão pode ser vista em dois prismas: ou de forma geral, quanto ao estado (segundo o qual Deus recebe o pecador crente e penitente na graça em virtude de Cristo e lhe outorga o perdão de todos os pecados dos quais ele é culpado) ou de forma especial, quanto aos atos particulares de pecado, nos quais posteriormente cai, para a remoção da culpa da qual se faz necessária uma absolvição particular. Não que o estado de justificação ao qual ele é trasladado possa ser dissolvido ou a remissão uma vez outorgada seja cancelada, porque Deus permanece sempre seu Pai, porém um Pai irado em virtude dos pecados recém cometidos (que, embora não possam constituí-lo “filho da ira” em virtude da imutabilidade da vocação e justificação, contudo o fazem “filho sob a ira”, de modo que, merecidamente, incorrem na indignação paterna de Deus e têm necessidade, doravante, de uma nova justificação ou remissão particular desses pecados pela fé e arrependimento).
XXI. Embora o crente justificado não tenha a remissão formal de pecados futuros, ele não cessa de ser feliz e livre da condenação positiva, porque ele tem o fundamento do qual pode inferir com certeza positiva que ela já está preparada para ele segundo a promessa de Deus. Embora toda a justiça de Cristo seja ao mesmo tempo imputada, todo seu fruto não nos flui imediatamente, mas sucessivamente, em proporção aos influxos do pecado (por cuja remissão o crente deve aplicar a si, a cada dia, aquele resgate [lytron]).
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[1] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética Vol. 2, ed. Cultura Cristã, São Paulo-SP 2011. p. 794 - 796

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