terça-feira, 29 de junho de 2021

A Mentira de Santo Afonso Maria de Ligório; Ou: Calvino Contra o Desespero de Salvação

    Tomei nota hoje de mais uma para a conta das muitas calúnias que certos teólogos fazem à Teologia Reformada, e em especial a Teologia da Substituição Penal. Hoje foi a vez do Santo Afonso Maria de Ligório, que em um texto sobre a Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo disse literalmente o que vai a seguir:

"Calvino, no seu comentário sobre S. João, disse uma blasfêmia, afirmando que Jesus Cristo, para reconciliar o Pai com os homens, devia experimentar todo o ódio que Deus tem contra o pecado e sentir todas as penas dos condenados e em especial a do desespero. Blasfêmia! Como poderia satisfazer pelos nossos pecados com um pecado ainda maior, qual o do desespero?"1

    A calúnia, que já existia quando Calvino ainda era vivo, ainda faz fama e enche os ânimos daqueles já são indispostos contra a teologia da expiação reformada, sem ao menos colherem dos textos do próprio reformador respostas que ele mesmo Deus a respeito da questão. Mas há alguns erros que eu quero lidar nessa questão, e responderei a partir da própria teologia de Calvino, como da própria tradição calvinista.


1) O Comentário de S. João

    Sem referência concreta, o santo apenas afirma que com base no comentário ao Evangelho de São João, que Calvino assevera a enormidade já citada. Como não há referências concretas, eu só posso presumir que ele se refere ao comentário de Jo 12.27, onde encontramos: "Agora, a minha alma está perturbada, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isso vim a esta hora".

    Calvino afirma a partir do versículo citado certa turbação em Cristo, e que isso "era muitíssimo útil necessário para a nossa salvação"2, considerando que ele fez isso para expiar nossos pecados, e para isso ele recorreu ao expediente de "assumir sobre si nossa culpa"3. Assim, ao fazer isso ele assumiu terrível horror, pois deveria sentir em sua própria experiência o juízo de Deus4.

    O uso dessas palavras por Calvino - que não raras vezes já gerou várias consternações em função do peso que exerce em no sentimento religioso devotado - é logo explicado no seguinte sentido: 1) As emoções, ainda que padecendo de certa subtração de auxílio5, sofreu o terror, mas não de forma desordenada, já que Cristo a isso se submeteu voluntariamente; 2) Todas as suas emoções eram reguladas pela justiça divina6; 3) Calvino ressalta tanto o realismo dos sofrimentos, como afirma a humanidade deles, de modo a nos inspirar a atravessa-los com a nossa humanidade7.


2) A Negação do Desespero que é Contrário à Fé

    A enormidade das acusações do santo não se detém a deduzir aquilo que não é explícito na fala do reformador, já que as mesmas acusações são tratadas no tomo II.XVI.12 das Institutas8. A clareza não deixa qualquer espaço para dúvida quanto ao que Calvino entendia tanto pelos sofrimentos na alma, quanto pelos "terrores", ou "agonias" de Cristo, que embora reais não contrastaram com veracidade da fé e das virtudes de Cristo totalmente subordinadas à justiça de Deus.

    Então assim, logo no início do cap. XVI.12 temos: "Em seguida, mais acerbamente, agitam a cavilação de que atribuo ao Filho de Deus desespero que é contrário à fé"9. As palavras de Calvino possuem peso que beiram ao desconcerto. A dificuldade, por vezes, pode brotar da ideia de ele atribuir "agonias a Cristo", e mesmo "agonias espirituais" a Cristo. Mas não se deve entender aqui essa afirmação em sentido absoluto, mas a partir de uma visão geral do argumento, pois o que Calvino afirma é o realismo dos sofrimentos de Cristo, presentes tanto no corpo quando na alma que, não obstante, não são contrárias à virtude da fé e ao seu poder.

    Assim, Calvino se esforça por mostrar tal realismo dos sofrimentos humanos de Cristo, não obstante privados de qualquer vício, já que a alma de Cristo, como já vimos, era tida por Calvino como subordinada à justiça de Deus em sentido absoluto. Mas nem por isso lhe é subtraída a realidade das dores. Assim continua a argumentação: "Confiantemente, portanto, como corretamente ensina Ambrósio, a não ser que nos envergonhemos da cruz, importa-nos confessar a consternação de Cristo"10.

    Esse agravo não foi mero agravo corporal, ou seja, não somente externo, mas também interno. Calvino se remete a Jo 13.21 que diz: Ἰησοῦς ἐταράχθη τῷ πνεύµατι (Jesus se comoveu em espírito); ou em Jo 12.27: Νῦν ἡ ψυχή µου τετάρακται (Agora está agitada a minha alma), para continuar: Πάτερ, σῶσόν µε ἐκ τῆς ὥρας ταύτης; (Pai me salve desta hora?), como que se referindo à angústia causada pela 'hora' (ὥρας) da paixão magna (passio magna).

    Mas Calvino destaca também um evento do qual podemos deduzir grande agonia em Cristo, e que está em Lc 22.43 onde Jesus, em sua plena humanidade ora: Πάτερ, εἰ βούλει παρένεγκε τοῦτο τὸ ποτήριον ἀπí ἐµοῦ· (Pai, se queres, afasta de mim esse cálice;), para se levantar em sua divindade: πλὴν µὴ τὸ θέληµά µου ἀλλὰ τὸ σὸν γινέσθω. (contudo, não faça a minha, mas a sua vontade). Ora, o que se intenciona dizer, é que a aversão interior de Cristo em seu sofrimento, e a sua realidade não são contrárias à fé, assim como os sofrimentos não são apenas externos e corporais, mas também internos e espirituais.

    De fato, certos teólogos afirmam que se tratou de certa simulação, e não de sofrimentos reais. Calvino diz: "Se dizem que foi [simples] simulação, é essa uma evasiva assas nauseabunda"11. Mas levando em consideração o pavor de Cristo em Lc 22.44: καὶ γενόμενος ἐν ἀγωνίᾳ ἐκτενέστερον προσηύχετο· (E estando em agonia orava mais intensamente), pavor que é contrário à plena fruição da felicidade, o que é provado pelo que se segue: καὶ ἐγένετο ὁ ἱδρὼς αὐτοῦ ὡσεὶ θρόμβοι αἵματος καταβαίνοντες ἐπὶ τὴν γῆν. (E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra). Calvino argumenta que Cristo sofreu o peso da ira divina quando em nosso lugar sofreu o peso do eterno juízo12, e até mesmo os terríveis tormentos de um homem condenado e perdido13. Obviamente que toda essa argumentação não deve se entendido como condenação em sentido absoluto, tal como a sofre os condenados na absoluta separação de Deus, entendendo-se tudo isso relativamente, pois há distinções a serem feitas, dado as informações queo próprio Calvino apresenta nas Institutas.

    Como já dizemos (cf. nota 9), ele nega a realidade do desespero que é contrário a fé. Também Calvino afirma que "Tudo quanto, porém, de livre vontade, sofreu por nós nada lhe detrai o poder"14. Assim também, ao mesmo tempo que afirma o poder de Cristo, também lhe atribui certa "fraqueza" pura e isenta de mácula relativa à humanidade assumida15, não quanto à impureza (akatharasia), mas quando à constituição intrínseca que convém à humanidade. Assim, Jesus possui "moderação que coíbe o excesso", assim "De onde nos pôde ser semelhante no medo e no temor, contudo, assim que diferisse neste particular"16 - cf. Salmo 6.4 (se levarmos em consideração os salmos como orações de Cristo).

    Também se nota que tais efeitos do pavor de Cristo não são simples temores dos mártires, os quais corriam alegres em direção ao fogo e às feras; obviamente que Jesus é maior do que todos esses. Depreende-se daí que seu pavor não foi apenas quanto aos tormentos corporais, mas também daquele terrível abandono do favor divino, estando como que diante de Deus padecendo como réu em nosso lugar. Aqui se afirmar as agonias espirituais, naquele ocultamento do favor divino. Mas Calvino continua a afirmar: "Mas, se bem que [nEle] o divino poder do Espírito Se ocultou por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne, deve-se, não obstante, reconhecer que a tentação [procedente] da sensação de dor e de medo foi tal que não conflitasse com a fé17.


3) A Opinião dos Dogmáticos da Escola Reformada

    A exposição de Calvino ainda comporta mais coisas, mas as exporemos na medida em que também fizermos referência a dois teólogos representativos da tradição reformada, que são Francis Turretini e Herman Bavink.

    Rechaçando o desespero que é contrário à fé, Francis Turretini afirma explicando os sofrimentos na parte superior da alma: "A punição do abandono, sofrido por Cristo (do qual ele se queixa, Mt 27.46) não foi um sofrimento físico, mas espiritual e interno. Proveio não de qualquer tormento (por mais medonho que fosse) que pudesse sentir em seu corpo (pois muitos dos mártires puderam ter tal experiência, os quais, não obstante, não se queixaram deste abandono), mas de um senso em extremo opressivo da ira de Deus que pesava sobre ele em virtude de nossos pecados"18.

   No entanto, para a compreensão completa dessa afirmação é necessário toma-la em certo sentindo, levando em consideração a pessoa perfeita de Cristo. Assim Turretini distingue: Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo"19. Assim Bavink também sustenta: "Autoacusação, pesar, remorso e confissão pessoal de pecados não podem ocorrer no caso de Cristo e ele tampouco estava sujeito à morte espiritual, à inabilidade de fazer algum bem e à inclinação ao mal. Precisamente para ser capaz de levar os pecados de outros e fazer satisfação por eles, ele não podia ser um pecador"20.

    Em consonância com o que foi afirmado, Turretini rechaça a implicação de nestorianismo, tão alegada hoje contra a Substituição Penal: "não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez)21"; e também rechaça a destruição das virtudes no evento da paixão de Cristo: "ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade"22; e impugna aquilo que ele chama de abandono absoluto nos seguintes termos: "ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32)"23.

Assim, exposto esses posicionamentos a respeito do que a teologia da substituição penal não é, Turretini passa a explicar o que ela, mais especificamente, é nesse abandono divino: "Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida"24. Assim, Turretini conceitualiza o que Calvino já anunciou antes no Comentário ao Evangelho de João (cf. nota 5) e nas Institutas (cf. nota 17). Mas assim ele aprofunda a questão do influxo da graça: "no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor"25.

    E aqui tocamos em certos pontos polêmicos que podem ser levantados, como a questão da "subtração da visão". Pois pode-se perguntar se a visão perfaz a justiça e a impecabilidade de Cristo, ou se se trata de uma graça causada pelo influxo divino, a qual pode ser suspendida sem o prejuízo da justiça, pureza e inocência de Cristo. Ora, segundo a potência absoluta, isso não é impossível; e se não é impossível, por se tratar de pura graça, logo a suspensão da afeição de vantagem e do senso do amor - não da sua realidade -, também não são impossíveis, e isso em nada prejudica a união hipostática, como nada obsta a união a catástrofe da morte corporal.

Turretini também fala da indestrutibilidade das virtudes pessoais de Cristo que está implicada no evento da paixão, pois: "E, como dizem os escolásticos, no tocante à [subtração da] “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16)"26; e: "porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus"27. Assim, vemos que não há "desespero" o qual é, segundo Calvino, "contrário à fé"; assim, não havendo desespero e nem morte espiritual, não pode haver, como acusa falsamente o santo, o sofrimento que é próprio dos condenados (cf. notas 19 e 20), e, por tanto, aquele terrível descrédito da bondade de Deus e a aceitação da derrota ao tormento eterno que é característico dos réprobos e dos demônios.

    Assim terminamos com esta citação: "Além do mais, tampouco se poderia dizer que ele entrou no lugar dos condenados ou foi condenado. De fato ele pôde suportar os castigos dos que merecem ser condenados, porém não dos condenados, ao ponto de adentrar os lugares infernais preparados para eles (de onde ninguém pode regressar), ou que ele foi devotado ao castigo eterno, visto que a eternidade dos castigos que merecemos foi compensada ricamente em Cristo por seu peso e por seu valor extremo"28.

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[1] LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. A Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo. IV.5, disponível em: file:///C:/Users/IB%20Cohapar/Downloads/Sto-Afonso-Ma-de-Ligorio_A-Paixao-de-NSJC-Vol-2.pdf .

[2] CALVINO, João. Comentário ao Evangelho de João. João 12.27-33. p. 33.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem. Turretini explica melhor essa questão, como veremos logo mais adiante.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 34.

[8] Idem. Institutas da Religião Cristã; ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. Livro II. Cap. XVI.12. p. 282-285.

[9] Ibidem, p. 282.

[10] Ibidem, p. 283.

[11] Ibidem, p. 283.

[12] Ibidem, XVI.10. p. 280.

[13] Ibidem, p. 281.

[14] Ibidem, XVI.12. p. 283.

[15] Ibidem, par.4.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, 284.

[18] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética Vol. II. ed. Cultura Cristã 1ª edição, 2011, São Paulo-SP. p. 428, 429.

[19] Ibidem, p. 429.

[20] BAVINK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. III. ed. Cultura Cristã, 1ª edição, 2012, São Paulo-SP. p. 405.

[21] TURRETINI, 2011. p. 429.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem, p. 430.

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