segunda-feira, 21 de junho de 2021

Bavink Sobre a Distinção Não Escriturística Entre Pecado Mortal e Pecado Venial

Deixando uma elaboração mais detalhada para a ética, discutiremos aqui, adicionalmente, apenas a distinção católica entre pecados mortais e veniais. Essa distinção tem sua origem na prática da penitência e ocorre, materialmente, já em Tertuliano e Agostinho, que falaram de pecados leves, superficiais, menores, muito pequenos e diários que ainda permanecem nos crentes. Elaborados no escolasticismo, foram estabelecidos pela igreja e, desde então, zelosamente defendidos por todos os teólogos contra toda oposição.75 De acordo com essa distinção, há pecados que fazem com que as pessoas percam a graça recebida e fazem com que elas se tomam merecedoras da morte, e outros, tais como uma palavra ociosa, gargalhadas excessivamente extravagantes, desejos que surgem espontaneamente, acessos de irritação ou raiva, um roubo muito pequeno, e assim por diante, que não acarretam a perda da graça, não são tanto contra, mas fora da lei, e são essencialmente perdoáveis. A distinção é baseada no fato de que a Escritura fala de vários pecados e punições (Mt 5.22; 7.3; 23.23; Lc 6.41; ICo 3.12-15), às vezes associa a morte a eles (Rm 1.32; 6.23; ICo 6.9; Tg 5.20; lJo 3.14), mas, em muitos casos, continua a reconhecer os crentes como tais, muito embora tenham cometido muitos erros (Pv 24.16; Mt 1.19; Lc 1.6; Tg 3.2), e também na consideração de que existem enfermidades curáveis e incuráveis, e que há insultos menores que não destroem a amizade.

Os reformadores, porém, rejeitaram a distinção como incompatível com a Palavra de Deus. Eles não negaram que existem graus de pecado, e, embora tenham continuado a empregar os termos “mortal” e “venial”, atribuíram a eles um significado diferente. Os luteranos, até certo ponto, tiveram de assumir essa distinção porque, como crentes, podiam cometer alguns pecados sem perder a graça de Deus e outros que lhes custam essa graça. Mas os reformados foram além e não quiseram se meter com essa distinção. Se, às vezes, ainda usam essas palavras, querem dizer com elas que todos os pecados, exceto o pecado da blasfêmia contra o Espírito Santo, podem ser perdoados e realmente são perdoados a todos os crentes, mas que todos eles são inerentemente merecedores da morte.

Os textos da Escritura sobre os quais os estudiosos católicos romanos baseiam sua distinção, consequentemente, não possuem qualquer valor como evidência. Apenas Mateus 5.22 oferece alguma semelhança de prova, mas a intenção da declaração de Jesus é muito diferente de querer distinguir pecados menores e maiores. Em oposição aos anciãos, que diziam que somente o ato pecaminoso, o homicídio efetivo, tomava uma pessoa culpada e responsável perante a corte local, Jesus diz que não apenas o ato, mas também a primeira irrupção de ira ilegítima - mesmo que não seja expressa em uma palavra sequer - tomava a pessoa sujeita a julgamento; que, quando essa ira se manifesta em um breve insulto hostil, o pecado já é tão grande que deve ser julgado pelo sinédrio; e que, quando a ira é expressa em um insulto, ela é imediatamente - independente de qualquer processo legal - merecedora do fogo do inferno. A referência, aqui, tem tão pouco a ver com pecados veniais que Jesus, inversamente, considera o mais leve pecado merecedor da mais grave punição, tão merecedor de punição quanto os anciãos consideravam o ato pecaminoso, isto é, o ato de homicídio. Jesus iguala a irrupção de ira ilegítima ao homicídio. Ele diz que o mais leve pecado é, de fato, um pecado muito grave, tão merecedor da punição mais terrível quanto o homicídio, segundo os anciãos. Jesus não diz que punição essa irrupção de ira merece no porvir, mas, quando a ira é acompanhada por uma palavra de insulto, esse pecado é tão grande que, nesse mesmo instante merece a punição do inferno. Nenhuma corte é mais necessária para estabelecer uma penalidade. Portanto, entendido adequadamente, esse texto é um argumento contra, e não a favor da distinção entre pecados mortais e veniais. Da mesma forma, toda a Escritura é oposta a essa divisão. A lei é um conjunto orgânico (Tg 2.10). Quem viola um mandamento é, em princípio, culpado de violar todos (Mt 5.17-19). Ela nos requer totalmente - com o coração e a mente, o corpo e a alma (Mt 22.37). Para a lei, nada é secundário e pequeno: maldita é a pessoa que não cumpre tudo o que está escrito no livro da lei (Dt 27.26; G1 3.10). Até mesmo as menores violações da lei - uma irrupção de ira, um desejo impuro, uma confirmação redundante, uma palavra vazia (Mt 5.22, 28, 37; 12.36; Ef 5.4) - são pecados iguais, em princípio, a atos pecaminosos e, portanto, a pecados como ilegalidade, hostilidade contra Deus. Considerados em termos de princípios, não há pecadinhos. “Nenhum pecado deve ser desprezado como pequeno, pois, na verdade, nenhum ato é pequeno quando Paulo afirma, com respeito a todo pecado, em geral, que o pecado é o “aguilhão da morte”.

Quando um pecado, digamos, uma palavra fútil, é considerado em si mesmo e isolado' de sua relação com a pessoa e as circunstâncias em questão, a afirmação de que ele é merecedor da morte eterna parece ser exageradamente severa. Mas é precisamente essa perspectiva atomista abstrata que é fundamentalmente rejeitada pelos reformados como sendo contrária à Escritura e à realidade. O pecado não é uma quantidade que, isolada de quem o pratica, pode ser contado nos dedos e pesado em uma balança. A distinção católica romana, consequentemente, levou, de fato, a todos os tipos de práticas más. Os teólogos não concordam sobre se um pecado venial insulta Deus ou não, deve ou não deve ser confessado; se é necessário um arrependimento verdadeiro para a retificação ou se a realização de alguma obra meritória é suficiente. No entanto, todos reconhecem que, na teoria e na prática, a distinção é virtualmente impossível de ser mantida. As pessoas, portanto, têm de recorrer a todos os tipos de argumentos sutis, que, ao serem adotados, corroem todo o caráter do pecado. Onde os argumentos falham, as pessoas acrescentam as opiniões dos doutores de teologia e se contentam com um maior ou menor grau de probabilidade. Dessa forma, eles acabam em uma avaliação atomista, casuísta, mecânica e materialista dos pecados e de suas reparações, enquanto mantêm as almas em um estado perpétuo de temor sobre se cometeram um pecado mortal ou incitando-os à futilidade e indiferença, já que os pecados são geralmente de um tipo muito leve e muito fácil de corrigir*. ________________________________________________________ [*] BAVINK, Herman. Dogmática Reformada: O Pecado e a Salvação em Cristo Vol. III. Ed. Cultura Cristã, 1ª Edição 2012. São Paulo-SP. p. 157 - 159

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