terça-feira, 31 de outubro de 2017

O Desespero Humano e a Cisão entre os Elementos Polares do Ser; Ou: Kierkegaard e a Doença do Espírito

   No livro "O Desespero Humano" S. A. Kierkegaard analisa duas doenças do espírito humano. Uma dessas doenças é o "desespero do finito" e a outra muito recorrente na nossa modernidade trata-se do "desespero do infinito".
   Mas o que é o "desespero do infinito"? Essa doença do espírito é caracterizada pela perda do eu, perda gerada pela ação desenfreada da imaginação humana. É na imaginação onde se encontram todas as possibilidades da revolução, pois uma vez que ocorre a vaporização do eu na ação imaginativa, há uma diluição das bases materiais da existência, de todas as formas sociais, religiosas e políticas, deixando o homem sem critério algum em meio ao mundo, o que o deixa sujeito à barbárie.
   A princípio as potências da mente tendem a criar fantasias que tanto são benéficas quanto maléficas. Dialeticamente o eu é uma síntese entre necessidade e liberdade, entre forma e dinâmica ou entre finito e infinito. Por isso uma mente trancafiada na necessidade ou no finito é esmagada pelo peso do "ser-aí", ou das coisas tal como são, e isso faz o homem ser precipitado no desespero do conformismo rígido ou conservador - e aqui temos o desespero do finito. Já um eu extremamente criativo pode perder-se no abismo  da imaginação, destruindo o contato com as bases que firmam o homem na realidade, fazendo o indivíduo migrar para a segunda realidade da fantasia - e esse é o desespero do infinito.
   Em uma sociedade mais estável, onde a estratificação social é mais visível e a mobilidade é rara, o desespero do finito é mais notável. Como exemplo poderíamos pegar a sociedade indiana, onde organização em castas tende a se manter estável de forma rígida e sem a possibilidade de migração de um grupo de uma casta para outra. Sociedades industrialmente e comercialmente menos desenvolvidas, assim como as sociedades orientais antigas (tipo a sociedade bizantina) e algumas modernas tendem a apresentar essa imobilidade.
   Uma sociedade móvel, como a sociedade ocidental, onde o senso de hierarquia é menos sentido, e onde reina a pluralidade móvel característica de uma sociedade comercial e industrial, os laços são mais facilmente dissolvidos, o que pode conferir - para bem ou para mal - uma sensação de liberdade, ao mesmo tempo que também sujeita o homem à insegurança natural de uma realidade móvel, o que nos faz sentir constantemente ameaçados em um mundo que se dissolve sob os nossos pés. Não a toa, a sociedade ocidental é a mãe das revoluções modernas, ao mesmo tempo em que também apresenta uma síntese entre dinâmica e forma ou a síntese entre conservação legal e mobilidade social (tipo a sociedade americana e os países constitucionais).
   A questão aqui é que dinâmica e forma são constitutivas da realidade como tal. Nas filosofias de tipo ontológico, essas são as duas estruturas do ser. Contudo, como reconheceram as filosofias da existência, as condições do ser-aí do homem apresenta uma ruptura, e a comunhão entre ser a devir é cindida, o que traz consequências históricas destrutivas. Se a doença característica da sociedade ocidental é o excesso de dinâmica e a consequente destruição das formas fixas, isso se dá por causa de uma ruptura das categorias ontológica. As constantes mudanças, tão louvadas por determinados grupos, podem desembocar no niilismo e na perda dos critérios objetivos de juízo sobre o bem e o mal. Daí decorre a destruição das leis e a consequente anarquização brutal e violenta da sociedade que lançou para longe todo critério de autoridade.
   Mas também poderia ser diferente e a sociedade cair em um fixismo asfixiante para a criatividade do espírito. O problema de uma sociedade imóvel está em cristalizar o erro de maneira dogmática e autoritária, não permitindo nenhuma espécie de mudança. Ainda que haja uma segurança, o fixismo formal, fruto de uma doença do espírito, impede que o erro seja corrigido, assim como aniquila as possibilidades do desenvolvimento de qualquer espécie de ciência.
   Em ambos os casos em que ocorre a destruição do espírito e da inteligência, é o homem que está sujeito a uma séria ameaça. No caso do relativismo causado pela queda em uma dinâmica alucinante, o homem pode ser relativizado (e essa é a nossa maior ameaça hoje); no caso do fixismo o que ocorre é brutalização do homem que não concebe nenhuma mudança. Em ambos os casos o homem fica sujeito à violência causada pela cisão entre dinâmica e forma, liberdade e necessidade, finito e infinito.
A cisão ontológica entre forma e dinâmica, necessidade e liberdade, finito e infinita, junto com a descrença em um padrão eterno e ao mesmo tempo a incapacidade de reformar o mundo segundo esse padrão é a grande questão filosófica e religiosa - incluindo da Reforma -, sendo tema de mitos, da reflexão dos profetas, filósofos e sábios, sendo a base desta reflexão o fundamento eterno da realidade ou Deus. É por isso que a perda da presença de Deus, em quem esses elementos ontológicos polares do ser se encontram reconciliados, é a causa da ruína que parece ser a característica marcante presente na história do nosso mundo.
   É importante ter a perda da presença de cura de Deus em Cristo, e a consequente cisão da unidade entre liberdade e forma, Lei e Graça - cuja unidade foi tão importante na teologia reformada -, como a razão da violência do mundo, pois sem Deus é impossível pensar ou mesmo conceber uma ruína no mundo, pois toda ruína para ser o que é requer um paraíso contra o qual tal ruína também se diz ser.

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