segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O Conhecimento de Deus Conduz-nos a Conhecer-nos A Nós Mesmos

   Por outro lado, é notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus e da visão dEle desça a examinar-se a si próprio. Ora, orgulho que nos é a todos ingênito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e santos, a menos que, mercê de provas evidentes, convencido sejamos de nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. Não somos, porém, assim convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não também para o Senhor, Que é o estalão único porque é de aferir-se este juízo. Pois, uma vez que à hipocrisia somos todos propensos de natureza, por isso, qualquer vã aparência de justiça amplamente nos satisfaz em lugar da real justiça. E, porque dentro de nós ou ao nosso derredor nada se vê que não seja contaminado por crassa impureza, por todo tempo que confinamos nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais refinada pureza. Exatamente como se dá com o olho diante do qual nada se põe de outras que não da cor preta: julga ser alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnado de certa tonalidade fosca.
   Ademais, dos próprios sentidos do corpo possível nos é discernir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliarmos os poderes da alma. Ora, se em pleno dia ou baixarmos a vista ao solo, ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parecemo-nos dotados de mui poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, alcançamos os olhos para com o sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a terra ingente se fazia de pronto se oblitera e confunde com fulgor tão intenso, de sorte que sejamos forçados a confessar que esse nosso acúmen em contemplar as coisas terrenas, quando para com o sol se voltou, é mera ofuscação.
   Assim também se dá aos estimarmos nossos recursos espirituais. Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, mui blandiciosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria, virtude e pouco menos que semideuses nos imaginamos. Mas, se uma vez que seja, para com Deus hajamos começado a elevar o pensamento e ponderar que é Ele, o quão completa a perfeição de Sua justiça, sabedoria e poder, a cujo estalão nos importa conformar-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória de justiça, logo como suma iniquidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria tresandará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder arguir-se-á ser a mais deplorável fraqueza.
Por tanto, longe está de à divina pureza conformar-se o que em nós se afigura como que absolutamente perfeito.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. cap. I, 2

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