segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O Conhecimento de Nós Mesmos Conduz-nos a Conhecer a Deus

   A soma quase toda de nosso conhecimento, que, de fato, como verdadeiro e sólido conhecimento se deva julgar, consta de duas partes: do conhecimento de Deus e do conhecimento de nós mesmos. Como, porém, de muitos elos se entrelaçam, qual, entretanto, precedo ao outo, e ao outro origina, não é fácil de discernir.
   Em primeiro lugar, porque ninguém se pode seque a só próprio mirar sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de Deus, em Quem vive e se move [At 17.28], porquanto longe de obscuro é que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum de nós provém. Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único.
   Em segundo lugar, porque estar mercês [graças] que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos, como por pequeninos regatos, conduzidos à fonte. Já de nossa própria carência, realmente, melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que reside em Deus. Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o Alto, não apenas porque, jejunos [sem comer] e famintos, daí roguemos o que nos falta, mas ainda para que, despertados por temor, aprendamos a humildade.
   Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias e, desde que fomos despojados do divino adereço [vestimentas], nossa vergonhosa nudez põe a descoberto mole imensa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada e qualquer um ser espicaçado a que venha pelo menos algum conhecimento de Deus.
   Destarte, da consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte senão no Senhor se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça, e, daí, somos de nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos a Ele com seriedade aspirar antes que hajamos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, que, na verdade, assim não descansa, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e insciente ou esquecido de sua miséria?
   Consequentemente, pelo conhecimento de si mesmo é cada um não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que pela mão conduzido a achá-lO.

João Calvino - Institutas da Religião Cristã. Cap. I, 1.

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