quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Lutero e a Ideia de Deus

   A ideia de Deus nos escritos de Lutero é uma das mais importantes na história do pensamento humano e cristão. Não se trata de um Deus ao lado de outros; só o encontramos por meio de contrastes. O que se oculta de Deus se vê no mundo, e o que se oculta no mundo se vê em Deus.
   "Quais são as virtudes (isto é, poderes de ser) de Deus? Enfermidade, paixão, cruz e perseguição: são as armas de Deus". "O poder humano esvazia-se na cruz, mas na fraqueza da cruz o poder divino se faz presente". Sobre o estado dos seres humanos Lutero dizia: "Ser humano significa não-ser; vir a ser e ser. Significa estar em falta, em possibilidade, em ação. Significa viver sempre em pecado, em justificação e em justiça. Significa sempre ser pecador, penitente e justo". Com esse modo paradoxal de falar, Lutero expressava a sua ideia de Deus. Deus só podia ser visto por meio de contrastes.
   Negava tudo o que pudesse dar a ideia de finidade em Deus ou de que Deus fosse um ser entre outros. "Entre as coisas menores, Deus é ainda menor. Entre as maiores, maior. É indizível, acima e fora de tudo o que podemos nomear e pensar. Quem sabe o que é Deus? Situa-se além do corpo e do espírito e de tudo o que podemos dizer, ouvir e pensar". Afirmava que Deus estava mais próximo de nós do que nós mesmos. "Deus descobriu o modo de estar presente completamente em todas as criaturas, e em cada uma especialmente, com mais profundidade, mais internamente do que a própria criatura se acha presente a si mesma. Mas não está localizado em nenhum lugar e não pode ser compreendido por ninguém, de tal maneira que tudo abrange e está no âmago de todas as coisas. Deus está ao mesmo tempo totalmente em cada grão de areia e, não obstante, em todos ele, acima deles e fora de todas as criaturas". Nessas fórmulas resolve-se o antigo conflito entre as tendências teístas e panteístas a respeito de Deus; demonstram a grandeza de Deus, sua presença constante e, ao mesmo tempo, sua absoluta transcendência. Eu direi de maneira bastante dogmática que qualquer doutrina de Deus que deixe de lado um desses elementos, não fala realmente de Deus, mas de algo bem menor do que ele.
   A mesma coisa aparece na doutrina de Lutero sobre a onipotência. "Chamo de onipotência de Deus não o poder pela qual ele não faz as coisas que poderia fazer, mas o poder pelo qual, na verdade, ele potencialmente faz tudo em todas as coisas". Queria dizer que Deus não fica à margem do mundo, contemplando-o de fora, mas está sempre agindo em todas as coisas, A onipotência é isso. Lutero descarta a ideia absurda de um Deus que precisa decidir primeiramente se ele deve fazer o que poderia fazer. Deus é poder criador.
   Lutero se refere às criaturas como "mascaras de Deus"; Deus se esconde por detrás das criaturas. "Todas as criaturas são máscaras e véus de Deus para que possam agir ajudando-o a criar muitas coisas". Assim, todas as ordens e instituições naturais se plenificam com a presença de Deus, e assim, também, o processo histórico. Desse modo ele trata todos os nossos problemas acerca da interpretação da história, os Anibals, os Alexandres e os Napoleões - acrescentaria hoje os Hitlers, ou os godos, os vândalos, os turcos -acrescentando os nazistas e comunistas - são conduzidos por Deus para atacar e destruir, de tal maneira que Deus nos fala por meio deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja. As pessoas heróicas em particular saem fora das leis ordinárias da vida. São armadas por Deus. Deus as chama e as força, concedendo-lhes a sua hora, e eu diria, o seu 'kairos'; Fora desse 'kairos' nada podem fazer, aliás, ninguém pode fazer nada fora desse momento certo. Nessa hora certa não há quem resista aos que agem. Entretanto, apesar de Deus agir em tudo o que acontece na história, ela é a luta entre Deus e Satanás e entre seus domínios diferentes. Lutero fazia essas afirmações porque Deus agia criativamente até mesmo nas forças demônicas.
   Essas forças demônicas não teriam ser se não dependessem de Deus como fundamento de seu ser e como o poder criador do ser presente nelas em todos os momentos. Deus possibilita que Satanás seja o sedutor, mas também, ao mesmo tempo, torna possível a derrota de Satanás.

Paul Tillich - História do Pensamento Cristão; ed. Aste. p. 245-247.

Nenhum comentário:

Postar um comentário