terça-feira, 26 de setembro de 2017

O Amor Concreto

   Existem duas maneiras de animalizar o homem: ou agir com brutalidade sobre ele ou agir com sentimentalismo. Nem a violência extremada e tão pouco afagos piegas podem ser confundidos com amor, já que ambos são as condições na existência onde o sentimento humano se encontra em estado de ruptura com o fundamento eterno da vida, o que acaba por gera um conflito entre dois elementos do amor, que é a firmeza espiritual e a doçura natural do sentimento humano.
   O homem é um ser completo e por isso só pode ser compreendido em sua completude e não por partes isoladas. A realidade do amor no tempo nos fornece um exemplo da fratura ontológica do homem que a sofre por estar voltado contra o Ser (Deus em linguagem teológica). Nesse sentido, em nome do amor, as mais perversas confusões podem se manifestar em uma unilateralidade que enxerga o amor ou como "aceitando tudo o que é humano" ou como "excludente do homem por amor ao correto". Em épocas de trevas excludentes o Amor se manifesta como reconciliador; e em épocas de pieguismo sentimentalóide e pedante o Amor se manifesta como o divisor reclamando seus próprios direitos em meio à mentira que destrói o espírito. Tanto a "violência por amor" tal como o "pieguismo" são degenerações humanas cujo sentimento natural se encontra adoecido por causa da ruptura do homem com o seu fundamento eterno.
   Hoje em dia, sem dúvida, vivemos tanto uma espécie de degeneração quanto a outra. Mas em ambas as degenerações existe algo em comum: a ausência do intelecto. Por isso a razão fornece a estrutura inteligível do amor sem o qual tudo se degeneraria em uma irracionalidade que rebaixaria o status ontológico do homem ao nível de bichos. Tanto o pieguismo kitch quando a violência brutal estão em confronto com a razão humana e invariavelmente é na ausência do intelecto que a desestruturação do homem mais se manifesta. Podemos ver um homem que em nome de sua paixão joga tudo para o ar, abandonando filhos e esposa e em consequência destruindo a sua vida e a dos outros; também vemos o homem brutalizado destruindo tudo aquilo que lhe poderia encaminhar a uma vida plena, machucando os outros e a si mesmo por meio de uma reação desproporcional a uma injustiça sofrida, sendo essa falta de proporcionalidade em sua ação o que gera o desequilíbrio e o aprofundamento ao nível da crise de uma injustiça que ele visava vingar.
   Contudo nem o amor exclui o sentimento e nem mesmo a reação enérgica à injustiça sofrida. Na verdade ambas, quando integradas ao intelecto, se manifestam como a essência do amor na história. A realidade concreta do amor é tanto integradora quanto excludente, já que o amor não está nem a cima e nem a baixo da justiça. Um amor é justamente excludente quando nega a negação do amor. A condenação tem raízes plantadas no amor que não tolera a injustiça transformando-a em não-injustiça, pois se assim fosse tal amor seria um salvo conduto para a manifestação do caos que aniquilaria o homem, ou a livre ação do não-ser que aniquilaria o ser. Nesse sentido tanto o ódio ao homem como o amor degenerado e leniente por mais que pareçam distintos à percepção vulgar, produzem os mesmos efeitos devastadores sobre o homem - e na verdade não pode haver a livre circulação da injustiça sem a presença da tolerância degenerada que "deixa correr". Que a "tolerância" dê espaço à ação desenfreada da injustiça é algo que não é historicamente desconhecido.
   Por tanto o amor é condenatório e excludente, mas o amor salvífico, não negando a ira e a condenação, mas pressupondo-a, é aquilo que se manifesta por meio do sacrifício criando uma segunda chance. A sabedoria Bíblica afirma que não pode haver perdão sem a verdade e a misericórdia. A verdade é aquilo coloca o transgressor de frente para o seu erro e de frente para a verdade que o confronta eternamente; a misericórdia é o desejo que afirma a vontade por parte do agravado de que o transgressor continue a viver. Se olharmos para a estrutura clássica do entendimento cristão sobre a redenção sabemos que nenhum erro fica sem custo. No casso da teoria da redenção mais importante, que é a de Santo Anselmo, vemos que a redenção necessita da vingança para produzir seus efeitos sobre o pecador. Cristo é aquele que sofre a ira divina que deveria cair sobre todos os homens, abrindo espaço para o perdão humano quando esse assume o seu erro diante de Deus. Nesse caso nem a misericórdia de Cristo exclui a justiça e nem a justiça de Deus exclui a misericórdia, pois ambas são assumidas de forma inteligível no sacrifício produzindo assim a satisfação que é apropriada pelo homem mediante o arrependimento penitencial.

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