terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Provérbios de Salomão (מִשְׁלֵי): 2ª Meditação: Ouça, Filho Meu, a Disciplina do Teu Pai e não Deixes a Instrução da Sua Mãe

Texto hebraico de Provérbios 1.8-19:

שְׁמַ֣ע בְּנִי מוּסַ֣ר אָבִ֑יךָ וְאַל־֝תִּטֹּ֗שׁ תּוֹרַ֥ת אִמֶּֽךָ׃
כִּ֤י׀ לִוְיַ֤ת חֵ֓ן הֵ֬ם לְרֹאשֶׁ֑ךָ וַעֲנָקִ֗ים לְגַרְגְּרֹתֶֽיךָ׃
בְּנִ֡י אִם־יְפַתּ֥וּךָ חַטָּאִ֗ים אַל־תֹּבֵֽא׃
אִם־יֹאמְרוּ֮ לְכָ֪ה אִ֫תָּ֥נוּ נֶאֶרְבָ֥ה לְדָ֑ם נִצְפְּנָ֖ה לְנָקִ֣י חִנָּֽם׃
נִבְלָעֵם כִּשְׁאֹ֣ול חַיִּ֑ים וּתְמִימִ֗ים כְּיֹ֣ורְדֵי בֹֽור׃
כָּל־הֹ֣ון יָקָ֣ר נִמְצָ֑א נְמַלֵּ֖א בָתֵּ֣ינוּ שָׁלָֽל׃
גּוֹרָ֣לְךָ תַּפִּ֣יל בְּתוֹכֵ֑נוּ כִּ֥יס אֶחָ֗ד יִהְיֶ֥ה לְכֻלָּֽנוּ׃
בְּנִ֗י אַל־תֵּלֵ֣ךְ בְּדֶ֣רֶךְ אִתָּ֑ם מְנַ֥ע רַגְלְךָ֗ מִנְּתִיבָתָֽם׃
כִּ֣י רַגְלֵיהֶם לָרַ֣ע יָר֑וּצוּ וִֽימַהֲר֗וּ לִשְׁפָּךְ־דָּֽם׃
כִּֽי־֭חִנָּם מְזֹרָ֣ה הָרָ֑שֶׁת בְּעֵינֵ֗י כָל־בַּ֥עַל כָּנָֽף׃
וְהֵם לְדָמָ֣ם יֶאֱרֹ֑בוּ יִצְפְּנ֗וּ לְנַפְשֹׁתָֽם׃
כֵּ֗ן אָרְחוֹת כָּל־בֹּ֣צֵֽעַ בָּ֑צַע אֶת־נֶ֖פֶשׁ בְּעָלָ֣יו יִקָּֽח׃ פ

Exposição:
8) שְׁמַ֣ע בְּנִי מוּסַ֣ר אָבִ֑יךָ וְאַל־֝תִּטֹּ֗שׁ תּוֹרַ֥ת אִמֶּֽךָ׃: "Ouça, filho meu, a disciplina do teu pai e não deixes a instrução da sua mãe".

Após o preâmbulo esse é o primeiro versículo que é iniciado com uma das palavras mais importantes do Primeiro Testamento. O שְׁמַ֣ע (shemá') está de Dt 6.4 (שְׁמַ֖ע יִשְׂרָאֵ֑ל יְהוָ֥ה אֱלֹהֵ֖ינוּ יְהוָ֥ה׀ אֶחָֽד)é1, e é a palavra que sinaliza a condição própria para o cumprimento da Aliança. Portanto é necessário cumprir o ouça (שְׁמַ֣ע) para que seja possível atentar para os termos da aliança. Nesse caso o shemá' aqui no remete também ao Quinto Mandamento. Êx 20.12 diz: Honre teu pai e mãe, e continua: para que se prolonguem os seus dias sobre a terra que Yahweh, teu Deus, dá para ti. O contexto do mandamento é o do firmamento dos termos da aliança que Yahweh estava estabelecendo entre Ele e os israelitas. Entre as promessas divinas estava dar uma terra que manava leite e mel, e sendo essa terra sagrada ela demandava a existência de um povo santo sobre ela. O não cumprimento da aliança faria com que a terra vomitasse os israelitas dela (Lv 18.28). Obviamente entendemos aqui ouvir pai e mãe como um dos termos da aliança e um dos preceitos de santidade. Portanto o paralelo não é inútil, senão que proveitoso e iluminador para aquilo que tenho o desejo de expor aqui, pois em termos práticos, o que se pede é que o filho (בֵּן) ouça (שְׁמַ֣ע) a disciplina e a instrução (מוּסַ֣ר) do pai (אָב) e a orientação (תּוֹרַ֥ת), a torát2 da mãe (אֵם).
9) כִּ֤י׀ לִוְיַ֤ת חֵ֓ן הֵ֬ם לְרֹאשֶׁ֑ךָ וַעֲנָקִ֗ים לְגַרְגְּרֹתֶֽיךָ׃: "porque coroa de graça serão para a tua cabeça e colares para o teu pescoço".

As coroas são símbolos de uma autoridade que veio a ser intrínseca a alguém. Mais vale, por tanto, a coroa interior do que a coroa exterior que é apenas representativa de algo que a supera. Da mesma forma, a obediência e a guarda da doutrina da virtude conferem uma graça (חֵן) em um sentido estético, o que de forma alguma se distancia de um sentido ético, pois algo que realmente expressa algo bom (חוֺב) na língua hebraicas inclui aí aspectos sensíveis e inteligíveis, e por tanto estéticos e éticos. Contudo é bom compreender o estético em um sentido analógico, pois se trata de uma estética superior, uma estética moral ou mesmo uma estética do espírito, não meramente uma estética em sentido puramente sensível. Falamos de graça aqui no mesmo sentido em que se fala de uma bela alma, pois mesmo na parte final do livro de Provérbios (Pv 31.30) temos uma advertência contra a graça (חֵן) em seu sentido meramente sensível: Ilusão (שֶׁ֣קֶר) é a graça (הַחֵן), e vaidade a formosura (וְהֶ֣בֶל הַיֹּ֑פִי), mas a mulher que teme a Yahweh, ela será louvada3. Portanto não se trata daquela beleza meramente sensível e passageira, mas sim aquela beleza do espírito da alma reta diante de Deus. Por isso podemos dizer que a coroa de graça (לִוְיַ֤ת חֵ֓ן) é o corolário espiritual da obediência à disciplina do pai e da instrução da mãe, é a beleza inteligível na qual é moldado aquele que se põe a escutar seu pai e sua mãe.
10) בְּנִ֡י אִם־יְפַתּ֥וּךָ חַטָּאִ֗ים אַל־תֹּבֵֽא׃: "Filho meu, se tentarem te persuadir os transgressores não consinta".

Como dito anteriormente, os provérbios são confeccionados a partir do pressuposto da unidade entre inteligência e moral. Nesse sentido, os que ouvem os provérbios se tornarão sábios e instruídos, e assim terão a ciência do agir esclarecido (הַשְׂכֵּ֑ל - cf. Pv 1.3). Aqui se manifesta a primeira concreção da instrução e orientação dos pais: não consintas (אַל־תֹּבֵֽא). O escritor não usa, para comunicar a palavra não, a partícula comumente usada, que é לֹא, mas usa a partícula אַל, que indica também uma negação em tom de súplica ou advertência. É como se o escritor dissesse: Por favor, filho meu, não faça isso; não consintas! A súplica é para que evite, se afaste dos transgressores (חַטָּאִ֗ים), lembrando aqui o Sl 1.1, em que o salmista declara bem-aventurado (אַ֥שְֽׁרֵי) o homem que não se detém no caminho dos transgressores (חַטָּאִים), palavra hebraica que quer também assinalar os criminosos, carregados de culpas etc. Assim, a súplica da sabedoria aqui é para que o filho se mantenha incólume, longe de companhias de homens carregados de iniquidade e pecado, de culpa e transgressão, pois essas farão daquele que a eles aderem transgressores consumados. Portanto, se os transgressores buscarem te persuadir (יְפַתּ֥וּךָ), por favor, não consinta (אַל־תֹּבֵֽא).

11,12,13,14)
אִם־יֹאמְרוּ֮ לְכָ֪ה אִ֫תָּ֥נוּ נֶאֶרְבָ֥ה לְדָ֑ם נִצְפְּנָ֖ה לְנָקִ֣י חִנָּֽם׃
נִבְלָעֵם כִּשְׁאֹ֣ול חַיִּ֑ים וּתְמִימִ֗ים כְּיֹ֣ורְדֵי בֹֽור׃
כָּל־הֹ֣ון יָקָ֣ר נִמְצָ֑א נְמַלֵּ֖א בָתֵּ֣ינוּ שָׁלָֽל׃
גּוֹרָ֣לְךָ תַּפִּ֣יל בְּתוֹכֵ֑נוּ כִּ֥יס אֶחָ֗ד יִהְיֶ֥ה לְכֻלָּֽנוּ

"Se disserem: Ande conosco, espreitemos e embosquemos sem causa o sangue inocente. Engulamos, como o mundo dos mortos, aqueles que vivem, inteiramente, e que eles sejam como os que descem para o fosso. Toda fortuna preciosa encontraremos, e encheremos as nossas casas de pilhagem. A tua sorte fará cair em nosso meio e haverá uma bolsa para todos nós".

    Aqui está o discurso dos transgressores. E o discurso dos transgressores envolve a busca por lucro mediante pecados, os quais podemos listar: assassinato4, cobiça do bem alheio5, furto6, idolatria7, desonra a pai e mãe8, e, no caso dos israelitas e cristãos, caso praticado por esses, o invocar o nome de Deus em vão9.
    A cobiça desmedida tem a sua devida condenação, porque é um mal que traz a si uma variedade de outros males. O convite dos transgressores, assim, é o convite para a rebentação do amor devido, o que produz fartamente várias espécies de transgressões contra o próximo. Podemos aqui nos lembrar da malfadada união entre Jezabel e Acabe, e a infame história da vinha de Nabote (1Rs 21). A pleonexia de Acabe (cf. nota 7) conduziu aquilo que era a vontade de obter uma propriedade a uma catástrofe. Jezabel, a esposa ímpia, homicida e idólatra de Acabe, levou Nabote à morte por força da calúnia que ela planejou contra ele. Aqui vemos que houve, junto à manifestação da pleonexia, a infração do Nono Mandamento (Êx 20.16)10. A associação perversa mediante casamento com Jezabel trouxe ruína a Acabe, mesmo a Lei vetando a união entre israelitas e pagãos (Dt 7.2,3). O casamento não é um mal, mas a associação imprudente o é. Podemos dizer que a vetação à união com aqueles ou aquelas de fora da fé segue a ideia é a de 2Co 6.14, ou seja, não se prendam a um julgo desigual com o infiel (µὴ γίνεσθε ἑτεροζυγοῦντες ἀπίστοις), lembrando que a noção de julgo tem mais propriamente a ver com o modo de pensar - cf. as escolas rabínicas da época de Jesus. É por isso que Paulo pergunta em 2Co 6.15 qual a sinfonia ou harmonia há entre Cristo com Belial (τίς δὲ συµϕώνησις Χριστῷ πρὸς Βελιάρ). Portanto não há sinfonia (συµϕώνησις), ou uma harmonia decorrente de notas concorrentes, entre aqueles que se prendem a um julgo desigual, pois aí surgirá heteronomia, ou uma percepção de mundo distinta, em que um ou outro terá que ceder - e ninguém pode ter garantia de conversão do perverso quando se associa a ele. No caso de Acabe, muito provavelmente o casamento dele com Jezabel surgiu por uma aliança entre reinos, o que já havia arruinado a vida de Salomão (1Rs 11.1-13). E em se tratando de Jezabel, filha dos Sidônios (1Rs 16.31), e que era sacerdotisa de Astarte, consorte de Baal, havia certamente nela uma mentalidade muito distinta daquilo que instrui a fé mosaica, que fazia a devida distinção entre sacerdotes e reis, o que acabava freando a pleonexia, ou a vontade avara por poder. A união do múnus sacerdotal ao real invariavelmente vinha, no mundo antigo, com reclamação de uma gênese divina dos reis. Sendo de linhagem divina o rei poderia fazer basicamente tudo o que o que se propusesse a fazer, e o caso da pergunta molesta de Jezabel a Acabe ilustra bem a questão. Assim Jezabel, diante da frustração que o abateu em virtude da negação da proposta de compra da vinha por parte de Nabote, ao Acabe não fazer nada Jezabel o indaga em 1Rs 21.7: Acaso reinas de fato em Israel? (אַתָּ֕ה עַתָּ֛ה תַּעֲשֶׂ֥ה מְלוּכָ֖ה עַל־יִשְׂרָאֵ֑ל), o que sinaliza a ideia perturbada de Jezabel tinha do poder - muito explicável pela natureza da "religião" de Baal e Astarte da qual ela era sacerdotisa e na qual a sua cabeça foi (de)formada.

    Se Acabe tivesse atentado para o conselho dos sábios, ele simplesmente teria ouvido o conselhos dos seus ancestrais e não teria se associado a algo que apenas lhe trouxe infâmia e ruína - o que não quer dizer que Acabe fosse a vítima do caso, apesar de se parecer em determinados casos mais temente a Deus do que Jezabel poderia ser (1Rs 21.29).

    Então aqui temos o exemplo claro da associação indevida ao coração ávaro que fala e convida: espreitemos e embosquemos sem causa o sangue inocente. E é sem causa (חִנָּֽם) porque o inocente não tem deméritos que justifiquem a violência se abater sobre ele. Assim também continua a falar e a convidar o coração afetado pela pleonexia: Engulamos, como o mundo dos mortos, aqueles que vivem, inteiramente (נִבְלָעֵם כִּשְׁאֹ֣ול חַיִּ֑ים וּתְמִימִ֗ים), e continua: e que sejam como os que descem para o fosso (כְּיֹ֣ורְדֵי בֹֽור). E aqui a finalidade visada pelo uso dos meios violentos: Toda fortuna preciosa acharemos (כָּל־הֹ֣ון יָקָ֣ר נִמְצָ֑א). A fortuna (הֹ֣ון) é o desejo do coração traspassado pela pleonexia (avareza). E a sociedade dos transgressores (חַטָּאִ֗ים) tem para si o sinal sensível da sua pilhagem da casa inocente nos dizeres: uma só bolsa para todos nós haverá (כִּ֥יס אֶחָ֗ד יִהְיֶ֥ה לְכֻלָּֽנוּ). A bolsa (כִּ֥יס) da pilhagem é o sinal e o fruto da sociedade da transgressão e se constitui como o sinal das trevas, a inversão do sinal sagrado da comunhão e da santidade que os fiéis celebram, participando da glória e da vida de Cristo, ao partirem o pão da unidade e o beberem o cálice da benção (1Co 10.16). O sinal da riqueza pilhada que une os transgressores é uma paródia grotesca do sinal do corpo e do sangue que unem os cristãos na vida absolutamente preciosa de Deus. Aqui nos associamos ao bem; ali os transgressores se aliam ao mal.

15) בְּנִ֗י אַל־תֵּלֵ֣ךְ בְּדֶ֣רֶךְ אִתָּ֑ם מְנַ֥ע רַגְלְךָ֗ מִנְּתִיבָתָֽם׃: "Meu filho, por favor não ande no caminho com eles, retém o teu pé para longe da senda deles".

    E assim prossegue a exortação em tom de amor paternal: Meu filho, por favor não ande no caminho com eles. O tom do versículo na língua original é de verdadeira súplica, pois aqui encontramos a mesma partícula de negação que já encontramos no vs. 10, que é a partícula אַל. Neste caso, ao invés de ser pedido ...por favor não consintas (אַל־תֹּבֵֽא)!, é pedido ...por favor não ande no caminho!, ou ...por favor, não te ponha no caminho (אַל־תֵּלֵ֣ךְ בְּדֶ֣רֶךְ)! E aqui aqui é oportuno destacar algo: ninguém se põe a caminho sem antes consentir. O consentimento se estabelece no coração e se executa com os pés a caminho, pois primeiro se move o coração, e o corpo, que lhe é submisso, segue prontamente.

    A exortação neste ponto é evidentemente preventiva. A súplica paternal continua a dizer: retém (מְנַ֥ע) teu pé (רַגְלְךָ֗) longe da senda deles (מִנְּתִיבָתָֽם). É o mesmo que dizer antes de tudo: mantenha o teu coração longe do coração deles, pois é conhecido de todos nós que seguir um caminho de alguém é a esse alguém segui no coração. Da mesma forma que entendemos que a Deus não se segue meramente com os pés. Nem que trilhemos fisicamente com uma cruz nas costas o caminho que vai da tribuna de Pilatos ao Gólgota, nem por isso podemos dizer que seguimos a Cristo, se isso não fazemos com o coração, pois a encenação não traz o proveito que temos enquanto participamos da realidade. Sendo assim, devemos cuidar da intenção que dirigem os nossos pés, para que não caiamos no mal caminho. É por isso que é dito retém (מְנַ֥ע), ou seja, não ceda! Não ceda com o coração para não te pôr a caminho, pois ao ceder com o coração teus pés te conduzirão à destruição.

16) כִּ֣י רַגְלֵיהֶם לָרַ֣ע יָר֑וּצוּ וִֽימַהֲר֗וּ לִשְׁפָּךְ־דָּֽם׃: "Porque os pés deles correm para o mal e se apressam a derramar sangue".

    E aqui o sábio suplicante explica: Porque os pés deles correm para o mal (כִּ֣י רַגְלֵיהֶם לָרַ֣ע יָר֑וּצוּ). Os corações corrompidos movem os pés para dois males: para o mal do próximo e para o mal daqueles que os tem. E, concretamente, qual mal é esse? Também são dois: se apressam para derramar o sangue (וִֽימַהֲר֗וּ לִשְׁפָּךְ־דָּֽם), assim como se emboscam no seu próprio sangue (וְהֵם לְדָמָ֣ם יֶאֱרֹ֑בוּ). Aqui os pés (רַגְלֵים) seguem no caminho destrutivo, pois os pés que se apressam (וִֽימַהֲר֗וּ) para derramar sangue (לִשְׁפָּךְ־דָּֽם), conduzem a si mesmos para o fosso e para a morte que para outros desejaram.
    Também podemos até mesmo comparar a diferença entre esses pé e a beleza daqueles pés que anunciam boas-novas (Is 52.7); estes são os pés da santidade e da beleza, pois anunciam a paz, aqueles os pés da miséria e da ruína. Os primeiros, os pés que anunciam a paz e andam na santidade de Deus, também são negados pelos homens, a ponto de serem traspassados em uma cruz; aqueles pés que provocam a ruína também são aceitos pelos homens que se unem para o crime contra aqueles pés, ferindo o seu calcanhar (Gn 3.15). Contudo o ferido também fere, mas não com as mesmas armas, pois não há inteligência possível quando se investe contra o Verbo11, é por isso que estes que assim fazem perdem a luz para enxergar seus próprios atos, afinal, os atos dos maus são reprovados pela própria sabedoria, que agora fala neste livro. Não há inteligência em agir contra o bem, e por isso o ato da transgressão é também parte da punição do próprio transgressor, porque feito contra a própria sabedoria, que é o caminho para a vida. Aqueles que contra a sabedoria pecam, abraçam a própria morte.

17) כִּֽי־֭חִנָּם מְזֹרָ֣ה הָרָ֑שֶׁת בְּעֵינֵ֗י כָל־בַּ֥עַל כָּנָֽף׃: "Pois sem razão se estende a rede à vista das aves".

    Esse versículo parece ser ininteligível para quem lê apressadamente. Mas se trata de um dito enigmático introdutório para os dos versículos que se seguem. A partícula כִּ֣י introduz uma oração explicativa do que foi dito e que agora será trazida uma sentença do que foi, ou ainda introduz uma oração daquilo que virá. Temos aqui como um um gonzo, pois este versículo une em si dois períodos, aquilo que foi falado e aquilo que se esta por falar, para que a informação se complete na mente de quem a lê.     Neste versículo abre uma perspectiva mediante um enigma. Pois sem razão (כִּֽי־֭חִנָּם), ou inutilmente, explica o sábio, se estende a rede à vista das aves (מְזֹרָ֣ה הָרָ֑שֶׁת בְּעֵינֵ֗י כָל־בַּ֥עַל כָּנָֽף). Por que inutilmente se estende a rede à vista das aves? Qual a relação dessa frase com tudo aquilo que a precede? Não são as redes estendidas de forma semelhante aos ardis dos ladrões lançados com os quais se abate a vítima? O que o sábio ensina, que é melhor estender as redes às ocultas para que o crime vingue? Longe disso! O que o sábio ensina, portanto? Quem são as "aves", ou melhor, os donos (בַּ֥עַל) de asa (כָּנָֽף)? Aqui nessa parte, as aves são os criminosos, os transgressores (חַטָּאִ֗ים). E o que é a constatação de que se razão se estende a rede? Tem a ver com um serviço que se faz sem razão de ser, pois quando a rede é estendida à vista das aves dificilmente a captura tem algum êxito. Mas os transgressores de caçadores agora passam a ser caça cuja rede para a sua captura é estendida de forma oculta? Sim, pois os caçadores da transgressão sempre foram as suas próprias caças, e o fato de estarem cegos para esse fato só mostra que eles não entendem realmente o que fazem, pois sempre colhem na surpresa a sua própria destruição. Trata-se do contragolpe dado à margem da consciência daquele que em sua transgressão se abate mesmo não sabendo que contra si faz o que faz. A paga da transgressão é a ruída do transgressor e essa paga da Deus a quem o abandona.
    Há algo de enigmático nessa parte, mas tudo fica mais claro porque a escritura dá fartos exemplos de que o dia da calamidade do ímpio vem repentinamente (Pv 6.15), e em um dia vem a ruína sobre a impiedade (Ap 18.8), assi como o juízo de Deus sobre o mal vem repentinamente (Mt 24.27; 1Ts 5.2; 2Pe 2.10). Aqui, ao que parece, há uma urdidura divina pela qual Deus sabiamente conduz o ímpio impenitente ao juízo (Dt 32.35), pois o Senhor espera o resvalar do pé. Sendo assim, podemos inferir que: ainda que o transgressor possua uma sensação de segurança, essa é a lacuna da inconsciência que é característica do próprio lugar escorregadio onde os criminosos (חַטָּאִ֗ים) foram colocados pelo Senhor (Sl 73.18), pois o Senhor, cf. Dt 32.35, como bom caçador, os aguarda no tempo (לְעֵ֖ת) do cambalear (תָּמ֣וּט) dos pés deles (רַגְלָ֑ם), pois estende a rede não à vista dos transgressores que se sentem seguros na sua transgressão (Sl 10.1-6; 1Ts 5.3; Ap 18.7), mas sim fora da vista deles, visto que não trabalha o senhor em vão. É por isso que o próximo versículo, querendo colocar às claras que o trabalho do transgressor, do criminoso, é se fazer culpado, afirma que o trabalho deles é se emboscar no seu próprio sangue - mesmo que isso não percebam enquanto nutrem falsa falsa segurança.
18) וְהֵם לְדָמָ֣ם יֶאֱרֹ֑בוּ יִצְפְּנ֗וּ לְנַפְשֹׁתָֽם׃: "Estes, porém, se emboscam em seu próprio sangue e minam a vida deles mesmos".

    Mesmos os transgressores e criminosos não sabendo, há uma rede lançada sobre eles, rede cuja trama é urdida pelos seus próprios crimes. Assim, ao pensar que minam a vida dos outros, eles acabam como aqueles que minam, ou espreitam, ou entesouram (יִצְפְּנ֗וּ) a si mesmos - e entesouram a si mesmos para a calamidade. E eles (וְהֵם) emboscam (יֶאֱרֹ֑בוּ) a si mesmos no sangue (דָּם) tal como o tolo tropeça no seu próprio entendimento (Pv 3.5b).
19) כֵּ֗ן אָרְחוֹת כָּל־בֹּ֣צֵֽעַ בָּ֑צַע אֶת־נֶ֖פֶשׁ בְּעָלָ֣יו יִקָּֽח׃ פ: "Assim é o caminho de todo ganancioso; com a vida deles eles pagarão".
    O que vem vem agora é o aviso conclusivo acerca do perigo daqueles que se põe a caminho juntamente com os transgressores (חַטָּאִ֗ים). E não há exceção: Assim (כֵּ֗ן) são as veredas (אָרְחוֹת) de todo cobiçoso (כָּל־בֹּ֣צֵֽעַ). A partícula כָּל, que indica todos, carrega aqui a força expressiva da mensagem que visa colocar sobre aviso o futuro destrutivo de todos os que busca trilhar um caminho de ganho aparentemente fácil.

    Por tudo o que foi dito, nessa primeira parte da concretação daquilo que os vs 1-7 procuravam ser uma introdução geral à chamada da sabedoria, vemos que o apelo para se evitar a sedução dos transgressores, é também um apelo para a conservação da honra e da piedade, as quais são também os caminhos para a vida. Se o mandamento exige que a vida seja paga com a vida, os transgressores que agem contra o mandamento divino, buscando um atalho para as riquezas mediante o derramamento de sangue, com a vida deles (אֶת־נֶ֖פֶשׁ בְּעָלָ֣יו) se dada a paga (יִקָּֽח) pelo justo preço por terem tirado a vida alheia.     Mas para não cair nisso, Ouça, filho meu, a disciplina do teu pai e não deixes a instrução da tua mãe, pois não há, no caminho da transgressão, algo da sabedoria!

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1] Ouça, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.
2] A título de curiosidade, a palavra hebraica para se referir à instrução (תּוֹרַ֥ת) da mãe tem a mesma raiz da palavra que traduzimos para lei no AT, que é תּוֺרָה (Torá). A lei de Moisés é, portanto, a Torá de Deus, a instrução de Deus para o povo, o que vai para além de uma lei em sentido estritamente jurídico.
3] שֶׁ֣קֶר הַחֵן וְהֶ֣בֶל הַיֹּ֑פִי אִשָּׁ֥ה יִרְאַת־֝יְהוָ֗ה הִ֣יא תִתְהַלָּֽל׃

4] O mandamento não matarás, que está presente em Êx 20.13, é bem melhor compreendido como não cometerás assassinato (לֹ֥֖א תִּֿרְצָֽ֖ח), e aqui se abre um leque de discussão interessante sobre a distinção entre matar e assassinar no Antigo Testamento. A palavra רָצַח (ratsah) de onde vem תִּֿרְצָֽ֖ח (tirtsah), quer dizer propriamente, segundo Strong, um homicídio (Dt 5.17; 1Rs 21.19; Jr 7.9), ou mesmo um assassinato acidental (Nm 35.11; Js 20.3) ou mesmo um ato de vingança (Nm 35.27). Uma flexão desse verbo em רֶצַח leva à sua substantivação para significar assassino. Já a palavra הָרַג, mesmo flexionada, é menos negativa, e envolve, de certo modo, algo como um "justiçamento" que não implica necessariamente em um ato pecaminoso, indicando até atos divinos (Dt 13.09 - 13.10 BHS; Jr 15.3; 2Sm 4.10), mas também pode se referir a atos francamente iníquos (Jz 9.5; 1Sm 22.21; 1Rs 2.5; Sl 94.6). Especificamente no Sl 94.6, há um paralelismo interessante entre as palavras הָרַג e רָצַח, ambas usadas em sentido evidentemente negativo. Entre palavras que possuem variação semântica, e que podem identificar tanto o sentido de matar quanto de assassinar, podemos identificar שׂחט (Jr 39.6; 2Cr 35.1,6). Também a palavra קטל, que significa matar, pode ser aplicada a Deus (Sl 139.19; Jó 13.15), e quando associado ao verbo רצח indica um ato iníquo como o assassinato (Jó 24.13). Preste atenção que para além do campo gramatical, há aqui evidente variação semântica, e mesmo palavras que evidentemente congregam em si um sentido apenas negativo, nos deixa patente a noção que no texto bíblico há uma distinção axiológica (de valor) entre o ato de matar e o ato de assassinar. Compreender isso é atentar para a verdade, um tanto quanto não evidente para alguns, sendo tida até mesmo como um contra-senso para outros, que há atos de matar como que permitidos pela Escritura, e atos como o assassinato que são vedados por ela. Notamos assim um nível interessante de abstração que levam à compreensão de atos fenomenicamente ou empiricamente semelhante são, no entanto, axiologicamente distintos. No campo da reflexão sobre ética, é importante notar que, apoiados nos dados da Escritura Sagrada, nem todo matar é pecado ou transgressão contra a lei divina, e poderíamos expandir esse assunto para saber quais casos constitui matar, e quais casos constitui realmente um ato de assassinar. Evidentemente isso nos leva para longe da interpretação um tanto unilateralista, de certos grupos fundamentalistas, de Êx 20.13, a ponto de proibir qualquer pertença de cristãos às Forças Armadas, à polícia, condenando até mesmo o ato de legítima-defesa como ato de transgressão aberta contra Deus. Tenhamos em conta que às vezes é necessário o uso da força para proteger a sua própria vida por inúmeras razões, entre elas preservar a sua vida em função da educação dos filhos, para proteger a família etc. O uso da força que não visa tirar uma vida, mas proteger outra, não é ato condenável por Deus. Mas nunca é demais lembrar que a vida cristã é também um convite ao sacrifício, sendo o que o ato do sacrifício é tido até mesmo axiologicamente superior à legítima defesa. A escolha entre esses dois atos possíveis é uma escolha a ser feita entre algo bom e algo ainda melhor. A legítima-defesa é boa, e verdadeiramente boa; contudo o ato de auto-sacrifício é ainda melhor - e o cristão está isento de culpa se escolhe uma coisa ou outra, tendo em mente que ainda assim é bom escolher o melhor.
5] Êx 20.217: לֹ֥א תַחְמֹ֖ד בֵּ֣ית רֵעֶ֑ךָ לֹֽא־תַחְמֹ֞ד אֵ֣שֶׁת רֵעֶ֗ךָ וְעַבְדֹּ֤ו וַאֲמָתוֹ֙ וְשׁוֹרֹ֣ו וַחֲמֹרֹ֔ו וְכֹ֖ל אֲשֶׁ֥ר לְרֵעֶֽךָ׃ פ: Traduzido: Não desejarás (לֹ֥א תַחְמֹ֖ד) a casa do teu próximo; nem desejarás (לֹֽא־תַחְמֹ֞ד) a mulher do teu próximo, o servo dele, a serva dele, o touro dele, o jumento dele e tudo o que é do teu próximo. Aqui, no Décimo Mandamento, temos um dos mandamentos mais psicológicos da Segunda Tábua, pois temos aqui, como nos lembra o N. S. Jesus Cristo em Mt 5.28 e em Mt 15.17-20, a compreensão de que a raiz de todos os males é o coração degradado, e que é da vontade que procede a ruína do homem. O mandamento, por tanto, que proíbe não concretizar em atos os desejos da má vontade, mas até desejar, o que é proibir aquilo que Jesus chamou em Mt 5.28 de cobiçar (ἐπιθυµῆσαι), especificando Paulo como impureza (ἀκαθαρσίαν) ou cobiça/desejo mau (ἐπιθυµίαν κακήν).

6] Um dos grandes ganhos - o principal, na verdade - de conhecer as línguas originais da bíblia é a ampliação do nosso universo semântico e consequentemente o aumento das possibilidades de aplicação de determinadas palavras do texto bíblico. Um exemplo disso é o Oitavo Mandamento que diz: não furtarás. No hebraico o Oitavo Mandamento (Êx 20.15) - segundo o protestantismo - é escrito da seguinte forma: לֹ֣֖א תִּֿגְנֹֽ֔ב׃ (lo' tignov). A raiz de תִּֿגְנֹֽ֔ב é גנב (gnv), que significa não apenas "roubar", mas também "sequestrar", incluindo aí o sentido do furto de "bens não visíveis". Um exemplo da aplicação da palavra גנב para o sentido de "sequestro" está em Gn 40.15, quando José, o filho de Jacó, diz ao copeiro "fui sequestrado" (כִּֽי־גֻנֹּ֣ב גֻּנַּ֔בְתִּי) da terra dos hebreus. No caso do roubo de bens invisíveis temos 2Sm 15.6, onde Absalão, filho do rei Davi, no contexto do levante contra seu pai, "roubava o coração dos homens" (וַיְגַנֵּב֙ אֶת־לֵ֖ב אַנְשֵׁ֥י יִשְׂרָאֵֽל) se aproveitando da negligência de Davi em julgar a causa do povo, conquistando o favor do povo para promover uma guerra. Contudo, certamente, o texto de Êx 20.15 tem muito o sentido imediato de furto de coisas visíveis - mas em um sentido mais profundo podemos aplicar a ideia de "furto" a esses exemplos dados que, obviamente, constituem também pecado, o que também implica em dizer que se trata de uma quebra das Tábuas da Lei.
7] É até um tanto quanto ociosos afirmar que não há furto que não surja antes como um desejo que sobe ao coração, conduzindo o desejante de bens ao ato do furto. O hábito vicioso do furto não surge senão pela cobiça constante de bens, o que na escritura, no novo testamento em específico, é nomeado como πλεονεξίαν (pleonexían), palavra que, para nós, tem o sentido de avareza. Em Cl 3.5 Paulo faz a devida identificação da cobiça de bens como εἰδωλολατρεία (eidololatreía), ou idolatría. E a razão disso é evidentemente simples: o desejo imoderado por bens leva o portador desse desejo vicioso à ação devotada na conquista de bens, ao ponto do impedimento do amor devido. Tragamos à memória Nesse sentido, todo vício que torce a vida da pessoa, moldando ela fora do amor devido em direção à ações que visem apenas o fim da conquista de bens, corrompe a vontade na busca apenas daquilo que é visível. Em 2Pe 2.14, entre as características dos falsos mestres (ψευδοδιδάσκαλοι) está o coração exercitado na avareza (καρδίαν γεγυµνασµένην πλεονεξίαις ἔχοντες), tendo destaque aqui a πλεονεξίαις, que sinaliza presença da cobiça insaciável e o desejo desordenado por riqueza. Quanto a tal assunto, nem é necessário o devido aprofundamento, já que exemplos tristes quanto a essa questão não faltam entre aqueles que se dizem mestres e anunciadores do evangelho.

8] O Quinto Mandamento ensina: Honre teu pai e mãe, e continua: para que se prolonguem os seus dias sobre a terra que Yahweh, teu Deus, dá para ti. Já temos a explicação desse mandamento no vs. 8 comentado neste texto. Mas a título de reforço, a entrada ao mundo da rapinagem não traz de forma alguma a honra devida aos pais. Podemos ampliar devidamente o sentido da honra devida para todos os atos, quer públicos ou privados, nos quais tragamos, como filhos, honra aos nossos progenitores ou aos nossos ancestrais. É o caso de João Batista, cujo nascimento seria motivo de grande alegria a Zacarias, seu pai, assim como a muitos outros (Lc 1.14).

9] O autor se remete a um primeiro grupo, que é ao israelita, para o qual foi dado primeiramente os oráculos de Deus (Rm 3.2). Nesse sentido, o israelita ou o cristão, como os portadores das palavras de Deus - um em um primeiro momento e o outro mais completamente em um segundo momento -, são aqueles que tem sobre si invocado o nome de Deus, um pela circuncisão e pela aliança e o outro pelo batismo e pela fé. O Terceiro Mandamento diz: Não tomarás o nome de Yahweh, seu Deus, em vão (לֹ֥א תִשָּׂ֛א אֶת־שֵֽׁם־יְהוָ֥ה אֱלֹהֶ֖יךָ לַשָּׁ֑וְא); e podemos afirmar certamente que aquele que tem sobre si o nome Israel ou cristão tem também sobre si a proibição de também viver uma vida vã.

10] O Nono Mandamento diz: Não pronunciará falso testemunho contra o teu próximo (לֹֽא־תַעֲנֶ֥ה בְרֵעֲךָ֖ עֵ֥ד שָֽׁקֶר׃). As implicações profundas da transgressão contra esse mandamento são claramente visíveis em tudo o que se segue após a nota. O relato da vinha de Nabote é como que a fisiologia, a demonstração mais clara das consequências dantescas da transgressão do Nono Mandamento e contra o quê o Mandamento previne.

11] A palavra Verbo é a tradução da palavra grega λογος. A palavra verbo sinaliza o tipo de palavras que usamos para sinalizar ações. Contudo, devemos entender que no grego a palavra λογος significa muito mais do que simplesmente ação, podendo significar discurso, palavra, e mesmo razão. No caso em questão estou dando prioridade à ideia de que o Verbo é razão e sabedoria, e nesse sentido não pode haver investida contra a razão que não seja algo contra a inteligência, ou mesmo sinal da ausência de sabedoria e inteligência.

2 comentários:

  1. Olá Juliano! Você se considera Puritano?

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    1. Olha, amigo, eu não sei se posso me considerar "puritano", mas a minha teologia é basicamente reformada, sim, e pende bastante para o puritanismo, e certa ênfase devocional um tanto quanto pietista.

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