segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Provérbios de Salomão (מִשְׁלֵי): 3ª Meditação (Pv 1.20-23): A Convocação Ruidosa da Sabedoria

Texto hebraico de Pv. 1.20-23:
חָכְמוֹת בַּח֣וּץ תָּרֹ֑נָּה בָּרְחֹבֹ֗ות תִּתֵּ֥ן קוֹלָֽהּ׃
בְּרֹ֥אשׁ הֹמִיֹּ֗ות תִּ֫קְרָ֥א בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים בָּעִ֗יר אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר׃
עַד־מָתַ֣י׀ פְּתָיִם֮ תְּֽאֵהֲב֫וּ פֶ֥תִי וְלֵצִ֗ים לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם וּכְסִילִ֗ים יִשְׂנְאוּ־דָֽעַת׃
תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י הִנֵּ֤ה אַבִּ֣יעָה לָכֶ֣ם רוּחִ֑י אוֹדִ֖יעָה דְבָרַ֣י אֶתְכֶֽם׃
Tradução e Comentário:

20) חָכְמוֹת בַּח֣וּץ תָּרֹ֑נָּה בָּרְחֹבֹ֗ות תִּתֵּ֥ן קוֹלָֽהּ׃: "A sabedoria grita na rua, e nas praças faz ouvir a sua voz"

    A sabedoria (חָכְמוֹת) na rua, ou na área do mercado (בַּח֣וּץ) grita ruidosamente (תָּרֹ֑נָּה). Clama com alta voz em um espaço largo (רְחֹב). Não há desculpa para não ser sábio diante do clamor constante e onipresente da sabedoria (חָכְמָה). Ela faz seu testemunho ressoar nos lugares onde sua presença é exigida, ou seja nas ruas (בַּח֣וּץ), e mesmo, como veremos, nas entradas dos (בְּפִתְחֵ֖י) portões (שְׁעָרִ֥ים) na cidade (בָּעִ֗יר), local onde se realizavam os julgamentos. Seu clamor onipresente reclama os ouvidos dos homens para que eles possam ter a reta sabedoria para o agir esclarecido (Pv 1.3).

    Para fins de esclarecimento, façamos uma breve consideração sobre a questão das rua (חוּץ). Não se trata apenas de uma via, mas sim um lugar do lado de fora da casa, não sendo apenas algo que por onde passam carros - ainda mais considerando que esse texto tinha em mente o que a rua era, em relação a nós, há três mil anos atrás. Seria mais melhor para o exato esclarecimento, que a palavra חוּץ se refere também à área de mercado, ou de trânsito das pessoas onde elas se relacionam. Há muitas implicações para a nossa compreensão a respeito do clamor da sabedoria nesse ambiente público onde ocorrem as transações do dia a dia. Coloquemos em perspectiva os inúmeros acordos, sejam eles promessas particulares, acordos comerciais, todas as coisas que reclama um agir esclarecido, justo e honesto. Certamente alargaríamos a nossa compreensão a respeito desse versículo se mantivéssemos essa perspectiva.

    Imaginemos a sabedoria exigindo a sua presença nas relações comerciais, clamando contra a fraude e contratos mal pensados, assim como clamando contra os negócios escusos, e vis que tem aparência de lucro, mas que são destrutivos a longo prazo. Lembremos aqui a profecia dos profetas contra as balanças viciadas, o lucro injusto (Pv 11.1), assim como o desejo pelo lucro a qualquer custo. O que deveria ser aceito no comércio e o que deveria ser rejeitado? O comércio em si não é mal e nem bom, ele é um meio, e um meio levado adiante pelos costumes dos povos. Nesse sentido, há certo limite que mesmo culturalmente é aceito na distinção entre valor e preço: nem tudo o que tem valor é precificável, como é o caso da vida humana, que é, por definição, incomerciável. Também há um limite no comércio quando se negociam coisas que irão inevitavelmente destruir vidas humanas - como é o caso de drogas, armas ilegais etc. Também contamos como imorais os cartéis e a prática do preço desumano em épocas de calamidade - embora entendamos certa dinâmica de mercado que faz com que certos produtos recebam aumento de preço, quando, em meio a tragédias, isso possibilita uma distribuição até mais sensata dos mesmos produtos, que passam assim a ser mais racionalizados.

    A questão é que em épocas de crise sempre vemos o fio da espada se tornar muito mais cortante, e isso demanda a sabedoria dos homens para lidar com escolhas difíceis. É por isso que nesses lugares fora de casa ou na área de comércio (חוּץ), as decisões devem ser tomadas tendo em vista também a sabedoria para se tornarem decisões humanas, assertivas e justas.     

21) בְּרֹ֥אשׁ הֹמִיֹּ֗ות תִּ֫קְרָ֥א בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים בָּעִ֗יר אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר׃: "Sobre os muros clama e às portas da cidade profere suas palavras"

    Assim a sabedoria clama de locais onde ela pode ser ouvida, e de onde não há desculpa suficiente para ser ignorada, ou seja, do alto (בְּרֹ֥אשׁ), lembrando que a palavra רֹאשׁ também é usada para se referir à cabeça (רֵאשׁ), ou mesmo aos líder (רֹאשׁ), sendo que a palavra ראש também é a raiz da palavra princípio, ou início (רֵאשִׁית) - em Gn 1.1, quando falamos a palavra no princípio, é essa palavra a usada junto com a preposição בְּ sufixada na palavra רֵאשִׁית, formando a expressão no princípio, ou בְּרֵאשִׁ֖ית (bere'šiṯ). Portanto essa palavra se refere ao ponto mais alto da cidade, seja no topo das muralhas ou em um lugar alto. A ideia é que a sabedoria profere as suas palavras (אֲמָרֶ֥יהָ תֹאמֵֽר) de um lugar de destaque a partir do qual todos podem ouvir. E não profere a sua voz em um lugar de difícil acesso, nem a uma elite escolhida, em um lugar em que não pode ser ouvida, mas sim de um lugar amplo (חוּץ), mas também às entradas (בְּפִתְחֵ֖י) dos portões (שְׁעָרִ֥ים), algo a respeito do qual temos algo a dizer.

    Os portões das cidades no contexto de Israel significavam mais do que simplesmente um lugar de acesso. Antes, como evidentemente se nota nos textos bíblicos, trata-se de um lugar onde se realizavam julgamentos e se ajuramentavam testemunhas das demandas entre os cidadãos, sendo os anciãos os "magistrados" tanto dos juízos quanto dos testemunhos (Rt 4.1-12), assim como os reis (2Sm 15.1-6) e os líderes (Lm 15.14). Nesse sentido, o fato de a sabedoria clamar junto às portas da cidade também reflete o fato de que, neste lugar - até mais do que em outros lugares -, a presença da sabedoria se faz fundamental, para que os juízos sejam realizados com extrema sabedoria. Às portas da cidade é nefasto que o juízo seja torcido, provocando uma cascata de catástrofes, males, o que promoveria o triunfo do mal e da injustiça. Em nosso contexto é o mesmo que dizer que a sabedoria clama às portas do Fórum.

    Levando em consideração o texto bíblico, inúmeras denúncias dos profetas tem em vista o caráter deletério dos julgamentos viciosos, algo a respeito do qual já discorremos aqui no comentário aos versículos 11, 12, 13 e 14 de Pv 1, onde mencionamos o caso do juízo torcido por Jezabel no caso da Vinha de Nabote. Mas para reforço deste comentário lembremos de Is 10.1-4, onde não é apenas dos juízes que se reclama, mas também dos legisladores maus que criam leis malignas e opressoras. A distinção entre juíz e legislador era via de regra desconhecida em muitos casos, a exemplo de Moisés que era tanto juiz do povo como legislador. Em Davi e Samuel temos casos análogos, pois a ideia de tripartição do poder é algo recente na história. Mas levando em consideração a sabedoria, vemos aqui quão falta ela faz quando ela é desprezada em lugares e pessoas decisivas, tal como às portas (בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים) e em reis e sacerdotes. Os esmagados, neste caso, são aqueles sob suas tutelas, e isso, hoje, não é diferente para nós, o que também nos convoca à oração afim de que Deus nos conceda juízes sábios e legisladores sábios que ouçam fartamente e se inclinem à voz da sabedoria. É necessário termos justiça (צְדָקָה) e direito (מִשְׁפָּט) às portas (בְּפִתְחֵ֖י שְׁעָרִ֥ים).

22) עַד־מָתַ֣י׀ פְּתָיִם֮ תְּֽאֵהֲב֫וּ פֶ֥תִי וְלֵצִ֗ים לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם וּכְסִילִ֗ים יִשְׂנְאוּ־דָֽעַת׃ "Até quando, tolos, amarão a tolice? E os escarnecedores, até quando amarão o escarnecimento para eles? E os loucos, até quando odiarão o conhecimento?"

    A pergunta funciona como um gancho para a consciência, mas também se embasa na realidade da pertinácia e insistência obstinada em resistir o chamado da sabedoria, que a todo momento clama, em todos os lugares, para que os homens se convertam da sua ignorância. Nesse sentido a sabedoria clama: Até quando (עַד־מָתַ֣י), inexpertos [ou tolos] (פְּתָיִם֮), vocês amarão (תְּֽאֵהֲב֫וּ) a inexperiência [ou a tolice] (פֶ֥תִי)? Isso é uma pergunta séria, porque o ainda que consideremos a inexperiência algo no qual cada um passa, viver nela é algo indefensável. O clamor da sabedoria pede por homens crivados de experiência e habilidade. Um povo que faz pouco caso desse clamor pede a ruína para si, porque se condena à indefesa contra o mal, assim como à tortuosidade dos caminhos, o que só pode conduzir à ruína.     E continua a voz da sabedoria: E os escarnecedores (וְלֵצִ֗ים), até quando amarão o escárnio (לָצוֹן חָמְד֣וּ לָהֶ֑ם) para eles (לָהֶ֑ם)? A frase aqui tem várias saídas, pois podemos entender a pergunta em dois sentidos, como: 1) Até quando os escarnecedores amarão o escárnios? e isso bem no sentido mais direto sobre o amar escarnecer. Ou então poderíamos compreender essa frase no sentido: 2) Até quando, escarnecedores, pelo desprezo do conhecimento vocês amarão a infâmia e o serem vítimas do escárnio, ou do desprezo? e isso porque escárnio (לצון), no sentido de zombaria também pode ser compreendida como desprezo, mas também a raiz dessa palavra pode vir a significar mostrar-se como um estúpido (ליץ) que tagarela sem parar com insolência (לָצוֺן).

    No último caso o escarnecedor ama o escárnio para si, como aquele que ama a infâmia do ser escarnecido em virtude da sua arrogância e insolência que há de ser destroçada pelo peso dos fatos. O escárnio do escarnecedor é um mal para si porque é o desprezo pela sabedoria, e o atentado contra a sabedoria é uma atentado e uma sabotagem ímpia contra si mesmo. Quem despreza a própria vida despreza aquilo que pertence a Deus, pois nenhum de nós pertencemos a nós mesmos.

23) תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י הִנֵּ֤ה אַבִּ֣יעָה לָכֶ֣ם רוּחִ֑י אוֹדִ֖יעָה דְבָרַ֣י אֶתְכֶֽם׃:"Torneis para a minha repreensão e farei transbordar para vocês o meu Espírito; e farei vocês conhecerem a minha palavra".

    Uma frase a ser meditada: Torneis pela minha repreensão (תָּשׁ֗וּבוּ לְֽתֹ֫וכַחְתִּ֥י). A nossa vaidade moral sempre acha a repreensão uma ofensa à nossa dignidade. Na verdade, não é a dignidade que é a nossa preocupação de fundo em muitos casos, mas sim a nossa imagem de dignidade. A nossa vaidade moral cria inúmeras defesas para evitar as investida da verdade contra a nossa falta, porque o que queremos para nós é a aparência da incorruptibilidade, não a própria incorruptibilidade. Para o homem caído, parecer ser é mais importante do que ser. Essa é a constituição da hipocrisia pela qual evitamos, como evitamos a morte, nos humilharmos diante dos fatos para sermos vistos tais como somos, pois o que somos interiormente é trevas e degeneração, é o fato de sermos inveterados pecadores que não querem se dobrar diante da repreensão da sabedoria. O homem do pecado não regenerado deseja matar a sabedoria para que a luz da sabedoria não ilumine as suas trevas. A vaidade moral é o nosso leve verniz com o qual maquiamos a nossa própria corrupção, afim de que ela não se manifeste em toda a sua realidade hedionda e insuportável. A hipocrisia é a nossa substância pública pela qual nos tornamos propagandistas insossos de nós mesmos, vendendo não o que somos, mas o que acharíamos melhor ser. Como diria um moralista francês: a hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude. Resistimos à verdade, e fazemos isso em prejuízo próprio, pois a confissão, a verdade e a misericórdia são os únicos instrumentos da nossa cura, pois ela começa inevitavelmente pela retomada do caminho da verdade. A confissão, a submissão à verdade, é cura porque é ali que nos afastamos da tortuosidade e da mentira e retomamos o caminho da verdade e da fidelidade.

    Mas mesmo assim, a sabedoria, por ser o que ela é, não cansa de clamar apesar da nossa rebeldia. E ainda promete: Eis que (הִנֵּ֤ה) farei borbulhar, ou derramarei (אַבִּ֣יעָה) para vós (לָכֶ֣ם) meu espírito (רוּחִ֑י). O retornar pela repreensão da sabedoria confere o seu, ou nos marca com seu espírito. Teríamos muito a falar do tipo de sabedoria pneumática (pneuma é espírito em grego, ou seja: sabedoria ou conhecimento pneumático = sabedoria e conhecimento espirituais), que é o modo de conhecimento de Deus na Bíblia, que está ligada à inspiração, diferente do tipo de sabedoria noética (nous = mente no grego), que se trata de um tipo de sabedoria tal como nos legou a filosofia - mesmo que aqui não se negue a ação divina como causa eficiente da sabedoria. Faço essa distinção aqui, muito embora no cristianismo a harmonização entre entre o tipo de conhecimento pneumático e noético foi algo buscado pelos cristãos ao longo do tempo, Mas a questão principal e que fica para nós é que a humildade, que para Paulo era compreendida como ταπεινοφροσύνη, ou seja, a disposição mental que parte do curvar-se, é a única disposição de espírito com a qual podemos nos aproximar de forma efetiva da sabedoria (חָכְמָה), e ouvir a sua voz. Pois sem ela se faz impossível atendemos realmente a uma repreensão. Pois é ouvindo a voz da sabedoria que entramos nos caminhos pelos quais podemos conhecer o conteúdo da sabedoria que milita total e absolutamente contra a nossa tolice e dureza de coração. Assim, quando ouvirmos a sabedoria e ela fizer borbulhar seu espírito para nós, então acontecerá como o prometido: e farei saber (אוֹדִ֖יעָה) minhas palavras (דְבָרַ֣י) a vocês (אֶתְכֶֽם). De posse das palavras da sabedoria encontraremos honra, conhecimento, felicidade, instrução para o agir esclarecido, o que nos abrirá as vias para o desfrute verdadeiro da vidai.

2 comentários:

  1. Olá amigo! Você se considera Liberal? Seus textos tem me ajudado muito mesmo! Principalmente na base filosófica, não pretende voltar com os artigos sobre filosofia,, de uma forma mais direta não? Gosto muito da página!

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    1. Amigo, vou responder em ordem as suas perguntas: 1) Eu sou mais inclinado ao liberalismo clássico, e tendo à adesão da escola ordoliberal alemã; 2) Eu pretendo sim continuar a escrever sobre filosofia, muito embora eu esteja dando certo teor filosófico nos comentários bíblicos que venho postando aqui.

      Mas uma pergunta: qual conteúdo sobre filosofia que você tem como leitura mais urgente? Ou seja: o que você gostaria que eu escrevesse por aqui?

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