quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Sociedade e Religião



      A separação entre sociedade e religião é algo tão impossível quanto a separação, na teologia cristã, entre a humanidade e a divindade de Jesus Cristo. A própria negação da sociedade de seus fundamentos religiosos por meio daquilo que Russell Kirk chamou de “desagregação normativa” é um empreendimento semelhante ao suicídio, pois, a longo prazo, tal sociedade tende a se transformar em um peso insuportável a si mesma, já que neste processo de “desagregação” ela corrói as bases na qual sustentava e justificava os seus princípios, hábitos, etc. Com isso ela acaba desfazendo as saudáveis fronteiras entre o bem e o mal, implodindo o saudável preconceito (no sentido da filosofia britânica) dos hábitos e ritos que orientam a sociedade de forma a fazer com que ela partilhe de princípios comuns – coisa básica para o estabelecimento de todas as relações, associações e negociações.

   O empreendimento racionalista moderno, que tende a incentivar a implosão dos hábitos, é algo que, na verdade, visa a suspensão de valores tradicionalmente cultuados e cultivados. O problema aqui reside no caráter fundamentalmente egoísta desta empreita, uma espécie de parricídio que na tentativa de eliminar de sobre nós a autoridade dos costumes, coloca cada indivíduo como o centro do seu próprio universo. Não é mera coincidência que da suspensão bruta e preconceituosa dos valores ( como se a suspensão dos valores longamente cultuados fosse algo bom em si mesmo) siga desentendimentos e a desagregação sem fim das relações. O constante empreendimento “crítico”, aqui, tende a se tornar, acriticamente, um modus bom em si mesmo que para se tornar honesto deveria colocar a si mesmo sobre suspeição.

    A dificuldade reside principalmente em não compreender um segundo aspecto: as sociedade humana não possui estômago suficiente para a suspensão abrupta dos valores e da tradição, pois não possui tempo como os intelectuais para refletir sobre o fundamento dos valores, pois se levada de modificação em modificação, a sociedade, as instituições, tendem a ser destruídas, fazendo a sociedade afundar em um mar de relativismo que, para além das fronteiras da individualidade, tende a atacar todos, estabelecendo o caos e a corrupção normativa pela falta de referências com peso de autoridade.

   Olhando por este lado, podemos voltar as nossas vistas – mesmo que de maneira breve – para as fundações da própria sociedade ocidental da qual fazemos parte, observando, por exemplo, como é que valores religiosos que foram cultivados ao longo dos séculos e milênios, não caíram, de uma ora para outra, da arvore do empreendimento racionalista. Olhemos para o casamento monogâmico. O casamento monogâmico não é racionalmente justificado, as pulsões sexuais não são compatíveis com a exigência de fidelidade conjugal. Mas olhando no espectro histórico podemos considerá-lo como uma disciplina da sexualidade e uma tentativa de separação entre eros (o amor sexual) e ágape (amor espiritual), de maneira a fazer isso refletir na sociedade inteira. Por tanto no casamento monogâmico existe uma razão que, na verdade, foi defendida pela Igreja Latina (Igreja Católica), infundindo um hábito de disciplina através de uma compreensão religiosa do mundo.

   Olhando assim o racionalismo, prescindindo de qualquer autoridade normativa que não ao indivíduo isolado no mundo, podemos ver o quão ineficiente ele poderia ser no estabelecimento de regras sociais gerais, fazendo de cada ser humano a sua própria estrela. A noção de autoridade tem uma função deveras importante no estabelecimento do convívio social, já que existe uma necessidade fundamental da existência de determinada autoridade vinda de regras, dos hábitos e costumes. No entanto falar apenas em um simulacro de autoridade fundada epenas em regras de convívio social é muito pouco para estabelecer, de fato, uma autoridade, uma autoridade que esteja acima da sociedade humana e que transcenda o período de uma geração onde reine um consenso. É necessário mais.

    A religião tende a colocar o ser humano em um confronto com o seu destino eterno, com algo que faça valer o conceito de verdade como algo, de fato, eterno e fixo. Tal sentido religioso é normativo para a vida humana, descendo dos níveis mais gerais e universais até os mais pessoais e particulares. O cristianismo católico foi aquele que conseguiu trazer unificação cultual a um continente não por mero acidade, mas porque fundado em um princípio de autoridade – do qual se vale de modo permanente muito mais do que o protestantismo, e ainda que consideremos o abuso de autoridade, tal abuso não pode ser visto a não ser como como algo acidental, não ferindo a essência própria da autoridade na religião católica -, se valendo da sucessão dos bispos cujo fundamento da autoridade é, na teologia, o próprio Jesus Cristo.

   Pois bem, neste sentido podemos ver que na fé católica existe uma determinada fundação de sua autoridade na própria autoridade divina, cujo exercício ficou relegado a poucos. Isso não quer dizer que tal autoridade fique restrita ao arbítrio dos bispos do momento, já que o exercício de autoridade só pode funcionar na comunhão com os bispos de todos os momentos, e comunhão com as resoluções conciliares, com os pontos doutrinais estabelecidos e com os Dogmas – que para a fé católica são imutáveis. Nesse sentido existe uma delimitação da autoridade, inviabilizando a ideia de liberdade e autoridade arbitrárias, quando no estabelecimento e na justificação da própria autoridade dentro da Igreja, seja esta a autoridade dos padres, bispos ou do Papa. É por isso que a tradição é tão valorizada na fé católica, o que não se dá, tragicamente, na esfera do cristianismo protestante.

   A fé cristã protestante valoriza muito a investigação pessoal da Bíblia (a Bíblia que foi reconhecida no concílio dos Bispos, e não de maneira aistórica, como que parida do nada), e a iluminação subjetiva do Espírito Santo, desconfiando da iluminação objetiva em um corpo autorizado de intérpretes, legando o dever da interpretação a todos os cristãos e não a um corpo oficial e divinamente autorizado. Essa liberdade interpretativa, ao longo da história, gerou uma quantidade inimaginável de interpretações um tanto quanto díspares. Mas para tentar corrigir ao degringolamento da unidade de pensamento da fé protestante, logo no início do movimento Lutero tentou recorrer a catecismos e aos dogmas tradicionais de fé, tal como encontrou a sua forma nas resoluções dos Concílios da Igreja. Por tanto ele recorreu a alguns elementos de autoridade tradicionalmente estabelecidos para dar corpo, forma e justificação à sua interpretação da fé. A própria Bíblia é um corpo de autoridade cuja validade para o cristão é normativa, ainda que não seja dado a cada cristão a possibilidade de verificar por si mesmos a validade racional dos Escritos. Sendo assim a cultura cristã se vale de vários elementos e preconceitos (no sentido da filosofia britânica) ou de aceitação acrítica de tradições e autoridades que só posteriormente, ao longo da história, vão mostrando a sua validação ou não. Por isso a própria impossibilidade de verificar a totalidade da fé por meio de uma investigação pessoal é algo que soa, ao menos, impossível como dogma de fé, pois muito próxima das exigências de um racionalismo que é impraticável por toda a sociedade humana ou de fé.

   Mas a fé protestante, ao menos, mesmo que inconscientemente, deve se valer de determinados elementos de autoridade sobre o grupo de fiéis para que uma unidade seja possível, e é justamente isso que faz da Igreja Anglicana e Luterana, por exemplo, instituições mais humanas e sociais do que um movimento Quaker, pois os dogmas, orientações e catecismos das primeiras unificam infinitamente mais do que as terríveis consequências da doutrina da iluminação subjetiva e adogmática da segunda – ainda que isso seja um pouco melhor do que o niilismo puro pois pressupõe a divindade. A doutrina é uma expressão de um sentimento de necessidade de ordem, continuidade e limitação da liberdade humana, e sem estes três a vida humana não é algo possível.

    Já dizia G. K. Chesterton que no início de toda a civilização existe um poço sagrado, um lugar de culto onde a santidade e significado transcendente, por si mesmos – algo como ex opere operato (que tem eficiência por si mesmo) -, tendem a organizar a vida a vida e estabelecer regras sociais, e, por fim, uma civilização. E isto opera para muito além das fronteiras do racionalismo niilista, e, por tanto, mais digno do que ele. Tal poço sagrado tende a simbolizar e manifestar o sacramento da eternidade na vida humana, fazendo o homem reconhecer os limites e efemeridade de vida, abrindo as vias do reconhecimento de algo superior que nos transcende e que nos fundamenta. A angústia diante da morte dá sinais da imortalidade da alma e do sentido eterno da vida, frente ao qual ganha-se um real sentido e significado em meio à confusão reinante. E tal impacto que coisas sagradas exercem em nossas vidas – como o amor, a sede pela verdade e por santidade – só nos mostram qual é o verdadeiro significado de tudo e, também, o sentido da existência da própria humanidade e a sua RAZÃO de ser.

    O que temos assistido hoje é a tentativa sistemática de afastar o ser humano do seu sentido eterno, fazendo com que as instâncias últimas da vida sejam nivelada às decisões do Três Poderes da República. Quando cortado da transcendência, o tendemos a colocar a nossa confiança fundamental, por exemplo, na política, sendo esta reconhecida como a última instância da verdade e o seu juiz absoluto, o que resulta em um servilismo humilhante, invertendo a ordem da realidade, sendo o Governo sobre nós senhor e não Servo. Todas as instâncias culturais da sociedade que lidam com os valores tem a sua origem fundamental na religião, nos costumes, nos hábitos. Assim também todas as bases de fundamentação moral – mesmo a fundamentação metafísica – tem a sua base na religião. O cristianismo, e mesmo a Bíblia (como vemos em I e II Samuel), mostrou que o sacerdote antecede o rei, ou seja: o significado eterno antecede a política, fundamentando ela e, com isso, a própria sociedade.

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