quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

De Lerins a Newman

    Uma palavra a ser dita sobre a questão dos pais e a regra de São Vicente de Lerins: vista através do pano de fundo do estado atual da doutrina católica romana, tal regra é de impensável aplicação. O mote: "o que em toda parte, sempre e por todos foi ensinado, isso é católico", não passa pelo próprio crivo patrístico, se com isso se recorre a um "consensus patrum" característico do século I a III d.C. Seria impensável apoiar Nicéia II ou o Vaticano I, por exemplo, nas bases teológicas dos séculos I a III d.C.; teríamos no máximo um esmagamento teológico, não um embasamento.

    A teoria do Cardeal Newman (ex clérigo anglicano convertido ao catolicismo romano no séc. XIX) está mais em conformidade com o estado atual de doutrina católica romana do que a própria regra de Vicente de Lerins. Felizmente Newman foi honesto o bastante para afirmar que certas doutrinas teológicas não estavam "presentes e ensinadas desde sempre". Ninguém, ao menos em sã consciência, poderia quiçá harmonizar dialeticamente Lerins e Newman - e muito porque a evidência documental tornou isso impossível.
    Mas uma última consideração: é interessante que uma noção de coisas tão tardia em relação ao evento da revelação original como é a teoria newmaniana seja adotada hoje por grande parte dos apologistas católicos romanos mais competentes. Newman superou Lerins, e, em relação à teoria de Newman, nada há de contradição nisso. A grande questão mesmo é que, à luz da história passada, se diz aqui que há teólogos que explicam mais competentemente aqueles que passaram em sua própria época do que aqueles que viveram na sua própria época explicam a si mesmos. É a teoria hermenêutica do pai do liberalismo teológico Friederich Schleiermacher (séc. XIX), que diz: "podemos entender os antigos hoje melhor do que eles entenderam a si mesmos". ______________________________________ OBS1: O século XIX foi o século mais historicista da história da humanidade; não há mera "coincidência" entre a teoria de Newman sobre o desenvolvimento de doutrina e o próprio historicismo - no fundo, o newmanismo é um hegelianismo "catolicizado". OBS2: Há uma verdade patente na ideia do desenvolvimento de doutrina; a questão é o quanto isso pode converter uma afirmação cristã passada em uma afirmação não cristã. Essa reviravolta doutrinária de coisas que não estão potencialmente no ensino antigo nada mais pode ser considerado senão como o resultado do desabrochar do joio plantado no campo do Senhor enquanto os superintendentes da plantação dormiam. OBS3: Quanto à teoria hermenêutica de Schleiermacher, ela não está em questão aqui. Da mesma forma que há verdades patentes na teoria do desenvolvimento de doutrina, há, em certa medida, verdades na teoria de Schleiermacher, e a obs2 se aplica aqui também. OBS4: Muito da teoria do "desenvolvimento de doutrina" tem aquele aspecto inconfundível do romantismo que tomou conta do século XIX, e que fundamentou também teorias do desenvolvimento histórico, a exemplo da ideia de que a história se desenvolve organicamente como se desenvolve a mente humana, onde essa passa do estado de inconsciência para um estado cada vez maior e mais claro de consciência. Obviamente nada disso é mais característico do séc. XIX do que esse otimismo progressivista que tomou intelectuais europeus como um arrebatamento extático toma um místico no ápice da sua meditação.

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