quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Eric Voegeli, Karl Barth e o Argumento Ontológico

     Mais admirado do que compreendido, Karl Barth tem sido mais sovado a partir de dentro - pelos protestantes (em sua maior parte pelos reformados) - do que por aqueles a quem se contrapõe de forma dura, como é o caso daqueles que pertencem à tradição católica romana - que, por uma coincidência irônica, tem oferecido mais recensões generosa aos seu trabalho, como é o caso das considerações de Hans Hur von Balthasar.

    Mas também não deve ser desconsiderado o reconhecimento do pensamento de Barth vindo de pessoas como Eric Voegelin, que foi duro em sua crítica aos movimentos de Reforma do séc. XVI, relacionando um certo "imanentismo constitutivo" do protestantismo ao "princípio protestante" de Hegel, pois, segundo Hegel, o novum do protestantismo foi ter abolido o estranhamento entre o infinito e o finito, ou, em linguagem religiosa, da distância entre Deus e o Homem, mediante o reconhecimento da unidade substancial entre uma coisa e outra, de forma a estabelecer a identidade absoluta entre Deus e o Homem no Eu (Ich). É sintomática a asserção de Hegel de que no protestantismo o homem compreende a realidade do estar no Espírito como um estar diante de Si. Da semelhança entre o eu e Deus afirmada e reafirmada na teologia cristã, Hegel ousa dar um passo além, afirmando não a semelhança, mas a identidade substancial. É isso que ele compreende como "princípio protestante".

    Mas para os equívocos grotescos sempre sobra um espaço de reparação, e em uma resposta a uma recensão feita pelo professor Altizer, o "teólogo da morte de Deus", ao "A Nova Ciência Política", Voegelin, discorrendo a razão de sua oposição cruel a Hegel, reflete sobre o uso do Argumento Ontológico do 'Proslogion' de Anselmo de Cantuária, onde também cita Barth. Este é o trecho que, para os propósitos deste texto, nos interessa:

"Deve-se notar que na seção sobre Anselmo de Cantuária, em sua Geschichte der Philosophie, Hegel trata considerável e competentemente da prova ontológica, mas não menciona a segunda parte do Proslogion com sua exploração analógica da luz divina para além da razão humana. Esta negligência, entretanto, não pode ser imputada como culpa exclusiva de Hegel, pois, a seu tempo, a concentração nos méritos silogísticos e deméritos da prova ontológica, negligenciando o mistério divino para além da razão, já se tinha tornado prática padrão entre pensadores ocidentais. Colocado nesse pano de fundo, dever-se-ia, ao contrário, reconhecer a percepção filosófica de Hegel que o moveu a reconhecer a questão, deformando-a. Em nosso tempo, esta destruição bárbara das estruturas espirituais e intelectuais está em processo de reparação. Menciono apenas o bom estudo sobre 'Fides Quaerens Intellectum' (1931) de Karl Barth, que preparou o autor para a revisão de sua Dogmatik" (Voegelin - Uma Resposta ao Artigo "Uma Nova História e um Deus Novo, mas Antigo?", do Professor Altizer).

    Em tempo, colocarei em linhas gerais o argumento do Barth nesse trabalho: 1) Ele expõe o erro das interpretação de figuras como Gaunildo, Tomás de Aquino e Kant em enxergar o argumento de Anselmo no contexto puramente racionalista, como se Anselmo estivesse propondo encontrar Deus no final de um silogismo, ou de um encadeamento de raciocínios, fazendo Deus surgir na ponta extrema ao final do encadeamento; 2) Ele também expõe o erro daqueles que acham estar junto a Anselmo quando se apegam apenas à estrutura silogística da primeira parte do Proslogion, julgando achar aí uma mera "prova racional apriori da existência de Deus", tal como pretensamente fazem Descartes Lebniz, Spinoza, Hegel etc.; 3) Barth argumenta que o Proslogion não é um Monologion, ou seja, trata-se de uma obra escrita como uma oração direcionada a Alguém, não sendo um monólogo solipsista que descamba em um "cogito ergo sun"; 4) Sendo um Proslogion a oração é direcionada a Alguém que é reconhecido como existente pela fé do teólogo, o que coloca a obra no âmbito da invocação e adoração que busca manifestar as razões da fé. O silogismo é mero construto secundário diante do dado absoluto da fé e é só por isso que a fé aqui é 'Fides Quaerens Intellectum' (A fé que busca compreensão de si); trata-se, em sentido clássico, de uma zetesis, ou de uma exegese que investiga uma experiência que se dá na tensão entre um eu orante e um Deus que se revela a uma alma aberta ao seu próprio fundamento divino; 5) Deus não é encontrado no fim de um silogismo, mas já está aí presente antes mesmo da investigação noética que busca o logos da experiência; 6) A importância da investigação de Anselmo está em que ele reconhece que Deus está para além do poder raciocinante do teólogo, pois a luz da teologia não é a luz do teólogo - como constata Barth no fim do seu estudo -, mas sim a luz de Deus dada em graça ao teólogo convocado para a sua tarefa; 7) A percepção da graça que ilumina o teólogo, como algo para além do poder intelectual do teólogo, para Barth está proporcionada à percepção de Anselmo de que Deus é "não apenas aquilo de que não se pode conceber algo maior, mas és também maior do que aquilo que pode ser concebido".

    Diante disso se torna luminosa a afirmação de Voegelin de que: "Esta atenção renovada atribuída a um importante teólogo protestante ao equilíbrio de Anselmo entre o mistério e a razão poderia também provocar alguma reconsideração sobre se o princípio hegeliano é tão 'protestante' quanto ele pensava ser". (Idem)

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