quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Contra os que Sustentam que não Há Bondade nas Obras de Deus, ou Então que as Regras de Bondade e Beleza São Arbitrárias

    Assim, afasto-me da opinião dos que sustentam que não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que as obras divinas são boas apenas pela razão formal que Deus as fez. Se assim fosse, Deus, que bem sabe ser seu autor, não precisaria contemplá-las e depois achá-las boas, como testemunha a Sagrada Escritura, que parece ter recorrido a essa antropologia apenas para nos mostrar que se conhece sua excelência olhando-as nelas mesmas, mesmo quando não se faça reflexão alguma sobre essa pura denominação extrínseca que as refere à sua causa [ou seja: mesmo quando não se faça reflexão sobre a sua bondade como originada em Deus]. Isto é tanto mais verdadeiro quanto é pela consideração das obras que se pode descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas obras tragam em si o caráter de Deus. Confesso que a opinião contrária me parece extremamente perigosa e bastante semelhante à dos últimos inovadores, cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que concebem Deus à sua maneira. Também me parece que afirmando que as coisas são boas tão-só por vontade divina e não por regra de bondade destrói-se, sem pensar, todo amor de Deus e sua glória. Pois, para que louvá-lo pelo que fez, se seria igualmente louvável se fizesse precisamente o contrário? Onde, pois, sua justiça e sabedoria, se afinal apenas restasse determinado poder despótico, se a vontade substituísse a razão e se, conforma a definição dos tiranos, o que agrada ao mais forte fosse por isso mesmo justo? Ademais, parece que toda vontade supõe alguma razão de querer, razão esta anterior à vontade. Eis por que me parece inteiramente estranha a expressão de alguns outros filósofos que consideram simples efeitos da vontade de Deus as verdades eternas da metafísica e da geometria e, por conseguinte, também as regras da bondade, da justiça e da perfeição. A mim, pelo contrário, me parece tão somente consequências de seu entendimento, o qual seguramente em nada depende da sua vontade, assim como a sua essência também dela não depende*.

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*] LEIBNIZ, G. W. - Discursos de Metafísica. II

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