sábado, 19 de dezembro de 2020

A Filosofia Subjetivista de Hegel?


    Entre algumas acusações contra Hegel é de que a sua filosofia seria "subjetivsta" (termo que tecnicamente se distancia do termo "subjetivo" já que este indica apenas a forma da recepção da experiência), pois um dos seus pilares dela seria o "eu" (Ich). Esse tipo de juízo parte de uma ignorância fundamental sobre a sua filosofia, revelando desconhecimento do fato de que, desde Fichte, o eu (Ich) é infinitamente mais do que meramente o eu do indivíduo. Hegel, ao contrário, parte da constatação que a pessoalidade do homem é ontologicamente maior do que a impessoalidade da pedra e que, por tanto, o Eu é a forma própria da verdade. Aqui Hegel está mais perto da verdade cristã para quem a verdade é um Deus pessoal do que das religiões orientais para as quais Deus é um ser impessoal - o nirvana, o ápice da realização espiritual no budismo, é justamente a diluição da personalidade no absoluto.
    Mas vamos para certas considerações: para Hegel não é o "eu" que cria a verdade, tanto é que o idealismo de tipo hegeliano não é o "idealismo subjetivista" (pois é estranho ao idealismo a própria noção de "relativismo"); não se trata meramente de um filosofia em que cada eu tem uma "verdade para si". Hegel criticou o aspecto subjetivista do romantismo alemão, embora tovesse feito parte dele. Paul Tillich diz: "Fora fortemente romântico, no início, dependendo de Schelling. Mas, por causa da sua mente sóbria, logo se separou de muitos elementos emocionais do romantismo e até mesmo o criticou na maior de suas obras publicadas, a Fenomenologia do Espírito"1Hegel mesmo afirma, contra o romantismo, que à religião é o pensamento que importa, e não o sentimento2. Hegel leva a sério a constituição una e objetiva da realidade. É verdade que a filosofia hegeliana entende que a verdade "não está pronta" (na mente do homem), e entende que a realidade vai aprofundando a sua verdade na medida em que marcha historicamente. Mas esse é o Geist, e uma vez que o espírito adquire o seu "caráter absoluto" ele obriga, e obriga objetivamente a todos. O Eu aqui é apenas o elemento sintetizador que vai agregando a si perfeições. No entanto ele não "produz" realidades meramente subjetivas, tanto é que um elemento produzido e sintetizado desse Eu é o Estado que obriga os outros "eus" menores.
    Hegel é tão anti-subjetivista que tem aquela famosa frase no "Grundrise": "O que é racional é real e o que é real é racional"3, discutindo em outras obras a realidade de uma filosofia apenas diante da acusação de a filosofia ser múltipla, pois diante do fato da multiplicidade de escolas filosóficas é fácil cair na conclusão de que a filosofia é inútil para alcançar a verdade. A grande questão é que, segundo Hegel afirma no "Introdução à História da Filosofia", a constatação da multiplicidade das escolas filosóficas evoca dialeticamente a ideia da unidade da verdade, e isso torna todas as filosofias com símbolos através dos quais, pela multiplicidade das filosofias múltiplas, podemos vislumbrar a realidade da filosofia una, o que é condizente com a exigência da razão4. Aqui o idealismo não é subjetivo, mas objetivo, entendendo o idealismo objetivo aquele que diluindo o real no pensável e, como diz Vicente Ferreira da Silva, "constituindo uma ciência universal e totalizante das coisas", para complementar, "A verdadeira figura na qual a verdade existe - para Hegel - é o sistema científico da verdade"5.
    Aqui é importante captarmos um elemento da estrutura da filosofia de Hegel, que é dialética. Por desenvolvimento dialético Hegel entende o próprio movimento de desdobramento da realidade e do "Geist", cujo "aumento" advém da confluência do trabalho de vários "eus" ou "espíritos" menores (homens individuais) ao longo da história. Hegel tem em mente aqui o desenvolvimento da cultura levado a cabo por cada pequeno esforço, e busca tanto superar os unilateralismos das várias escolas filosóficas, como agregar em um sistema maior os vários pontos de verdade de todas as filosofias, assim como das contribuições da política e da religião. Por tanto, o subjetivismo constitui um dos momentos da verdade do Espírito Absoluto, ou do Sistema do Espírito Absoluto. Diante disso, se há subjetividade em Hegel, isso é apenas um momento dialético, sendo apenas um dos parágrafos do desenvolvimento da própria filosofia, ou do sistema hegeliano, e não a base desse sistema.
    Mais interessante é que Eugene Weeb, amigo de Voegelin, no livro "Os Filósofos da Consciência" ao discorrer sobre Bernard Lonegam, padre tomistas canadense, diz que Lonergam se identifica com Hegel porque afirma que Hegel está na classe dos intelectualistas, assim como Tomás de Aquino - sendo essa a razão pela qual Voegelin se opõe à filosofia altamente objetiva de Lonergam6. Entenda aqui que esse intelectualismo comum a Hegel e a Santo Tomás requer assentimento absoluto da nossa razão; não que estejamos igualando a filosofia do santo à filosofia de Hegel (mesmo levando em consideração que tanto Santo Tomás quanto Hegel se tinham como discípulos de Aristóteles), mas sim destacando uma certa estrutura comum que, evidentemente, possui um tônus otimista em relação ao homem como capaz de Razão. E eu posso ousar dizer que esse otimismo é maior em Hegel do que é em Santo Tomás.
    Vale lembrar, para fins comprobatórios sobre a fisionomia objetivista da filosofia de Hegel, que a exaltação do pessoalidade, da subjetividade e individualidade foi algo que Kierkegaard aos protestos opôs justamente ao idealismo objetivo (considerado por Kierkegaard como desumanizante) de Hegel. Vicente Ferreira da Silva afirma a impressão de Kierkegaard sobre a filosofia de Hegel: "Kierkegaard vê no hegelianismo a manifestação máxima da coerção da objetividade despótica aos apelos da vida individual"7Podemos dizer que, para Kierkegaard, a filosofia de Hegel ao desnudar totalmente os arcanos do eu, expondo-o objetivamente no mundo, acaba por destruir a constituição de inexauribilidade do próprio eu - ou, como diria Voegelin, Hegel eclipsa o eu.

    Eric Voegelin se opôs à toada totalitária de Hegel em uma perspectiva semelhante à de Kierkegaard, exaltando a iluminação da consciência individual resgatando o conceito da "metaxis" platônica, tentanto fugir do sistema totalitário e objetivante de Hegel. Para Voegelin, a filosofia extremamente objetivante de Hegel acaba por exaurir o centro misterioso da realidade, diluindo a infinitude inefável do mistério divino, propondo, na verdade, um reducionismo do mistério divino à razão histórica do homem; ou seja, Hegel terrestrializa a realidade infinita e eterna de Deus destruindo tudo aquilo que diz respeito à humanidade do homem e à divindade de Deus, por tentar enquandrar a liberdade e a infinitude em um certo sistema. Dessa atitude, segundo Voegelin, seguiu-se os sistemas totalitário e reducionistas das políticas modernas "totalizantes", como o fanatismo nacionalista, o comunismo e mesmo as ideologias positivistas (seja nas ciências ou no direito) que grassam a cultura ocidental desde o século XIX.

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1] TILLICH, Paul - Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. Ed. Aste. 2010, p. 136
2] HEGEL, W. G. F. - Enciclopédia das Ciências Filosóficas: 1: A Ciência da Lógica. Ed. Loyola. 2012, p. 39-41
3] HEGEL, W. G. F. - Princípios da Filosofia do Direito. Martins Fontes. 2007, p. XXXVI.
4] HEGEL, W. G. F. - Introdução à História da Filosofia. Ed. 70. 2018, p. 26-36.
5] SILVA, Vicente Ferreira da - A Transcendência do Mundo; Notas sobre Kierkegaard. Ed. É Realizações. 2010, p. 420.
6] WEBB, Eugene - Filósofos da Consciência. Ed. É Realizações. 2013. p. 36.
7] SILVA, Vicente Ferreira da - A Transcendência do Mundo; Notas sobre Kierkegaard. Ed. É Realizações. 2010, p. 420.

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