quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Ταπεινοφροσύνη; Ou: Os Pais, a Escritura e a Disposição Mental que Parte do Curvar-Se

    Em todas as ciências, saber pouco é infinitamente pior do que não saber nada. Em filosofia e teologia esse mal é realmente potencializado, sendo capaz de muito estrago. E isso não é menos verdade em relação ao conhecimento teológico daqueles que convencionalmente chamamos de "pais da igreja".

    Há, sobre a controvérsia recente, que se fazer algumas reparações e ajustes. E para ser breve, faço algumas considerações sobre isso: 1) Que os pais da Igreja escreviam como pastores para suas comunidades é uma verdade; 2) Que não eram infalíveis, outra verdade; 3) Que as obras deles podem ser tidas, a princípio, em sua intencionalidade, como o sermão de vários pastores de hoje, nisso há verdades e falsidades; 4) Que a teologia moderna hoje é mais complexa do que muitas reflexões de alguns pais, há verdade nisso; 5) Mas isso não significa que gênios raríssimos como um Gregório de Nazianzeno, um Agostinho ou um Orígenes sejam coisas facilmente reproduzidas, e é até impossível nisso coloca-los no mesmo nível de "pastores locais".

    Nomes como os de Agostinho, G. de Nissa, Basílio o Grande, Orígenes, Irineu de Lyon, João Crisóstomo, Tomás de Aquino, Lutero ou Calvino continuarão, dada a sua enorme importância para a história da Igreja, a reverberar história afora, enquanto que muitos pastores, por mais que tenham desempenhado papéis importantes na vida particular de determinados cristãos, serão esquecidos pela história, para serem relembrados apenas no juízo final.

    Ademais, ainda que os pais sejam importantes por serem portadores da regula fidei (mas não tão assim ao ponto da infalibilidade - e a análise comparada das obras deles mostra diversidade teológica, longe da homogeneidade lendária sustentada apenas por ignorantes da matéria em questão), eles não se ombreiam à Escritura Sagrada (e nem desejaram isso), pois a Escritura Sagrada não é apenas um amontoado de folhas e letras, e nem um simples amontoado de letras e folhas espirituoso, mas sim o testemunho da revelação recebida e transmitida pelos apóstolos e profetas, e portanto, portadora das realidades constitutivas da Igreja. É porque a Escritura é ao registro das palavras dos apóstolos e profetas - apóstolos e profetas esses que foram os portadores e receptáculos originais da Palavra constitutiva da vida da Igreja - que a Escritura tem valor para nós. Nada mais do que isso, e nada menos também.

    Os apóstolos e os profetas não estão ao lado, nem simplesmente à frente em um plano horizontal em relação à Igreja, mas acima no posto de autoridade, atravessando verticalmente, de alto a baixo, todas as cabeças e toda a tecitura teológica possível da Igreja. Frente a eles o que nos cabe é a reverência de quem aprende, e não a soberba dos que se ombreiam. A nossa disposição de espírito frente a eles - e por isso frente à Escritura Sagrada - é a quilo que em grego chamamos de ταπεινοφροσύνην (tapeinophosine), ou a disposição mental que parte do curvar-se, o que para nós é a disposição de espírito que chamamos de humildade.

4 comentários:

  1. Olá amigo, ando acompanhando seus artigos a um certo tempo, sinto que estou aprendendo muito com seu conhecimento, seus textos são ótimos para esclarecer duvidas e aprender cadas vez mais sobre filosofia, apologética etc. Mas, gostaria de esclarecer um duvida/recomendação, você pretende algum dia fazer um texto, desmascarando o mito de que o protestantismo causou o liberalismo, e a subversão moral que vemos atualmente por parte de quase 90% do liberais atuais (para não dizer TODOS! rs.) E que só por causa da reforma que ocorreu o iluminismo e outras besteiras, gostaria de lhe ver comentando sobre. Se um protestante tem que defender o livre-mercado/"capitalismo" e os EUA, ou se pode colocar-se averso a essas ideias. Bem, é claro, eu também não sei se você é liberal, espero que não. Mas eu em si só estou escrevendo isso por causa que eu particularmente acho MUITA heresia o liberalismo no geral, tanto "econômico" quanto social/cultural. Eu sei que que por parte da Igreja Apostólica Romana, o liberalismo é excomungado, mas eu gostaria de saber mais se de fato não teve nenhum dedo jesuíta nisso ai, rs.

    PS: Não sou comunista muito menos socialistas, eu também não sou um "anti-capitalista", sou anti-liberal, e essas grande corporações como Facebook, Amazon, Magazine etc. Que sinceramente, no meu ver só destroem a sociedade, e a corroem, e que sim, na minha visão são bem "hereges", para não dizer uma coisa mais pesada, rs. Eu sei que esse é um pensamento um pouco (Forte) mas, claro, é só uma duvida, gostaria de ver uma resposta, você parece que domina muito o assunto!

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    1. Olha, esse tema é bem complexo porque ele tem algumas premissas que precisam ser distinguidas do próprio protestantismo. A ideia de que o protestantismo conduziu ao "liberalismo" e todo o relativismo moral é algo um tanto quanto questionável. Há um livro do Eugene Rosenstock-Huessy, o "Out of Revolution", que explica a razão pela qual o protestantismo freou a onda secularizante na Europa por mais de séculos. Há várias testes que propõe a ideia de que Duns Scotus, em usa cisão radical entre fé e razão, criou todo o fundamento ideológico da secularização, conduzindo às distinções radicais entre natureza e sobrenatureza.

      E quanto ao liberalismo, é bom lembrar que a reflexão liberal foi muito fomentada em função de guerras religiosas que foram inevitáveis na história - mas essa não é a sua "única origem". Obviamente que muitos vão sugerir que a Reforma tem parte nisso, mas é bom prestar a atenção quais as premissas estão metidas por debaixo desse argumento, como a ideia de que o ideal para o mundo ocidental era uma Europa pan-Católico Romana. Também é bom lembrar que a noção Católica Romana é auto-referente. Se eles se afirmam a pilastra do mundo, obviamente que tudo o que vai fora deles é relativismo. É uma noção um tanto quanto totalitária de verdade. Ninguém nega que a verdade seja "totalitária", mas existem evidências históricas que mostram que o catolicismo romano tem uma noção até mesmo niilista de verdade, porque tende a submeter a verdade sob o seu arbítrio - como é o caso da questão iconodula, por exemplo.

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    2. Mas continuando, o liberalismo econômico deve ser distinguido em sua versão clássica e moderna. Muito do que se tem como "ideologia liberal" é, na verdade, resultado de certos arranjos políticos que buscam institucionalizar conflitos. Eu posso dar aqui inúmeras razões pelas quais, de certa forma, a fé cristã fomenta certa "ideia" liberal ao tentar distinguir a Igreja e o Estado, coisa que o Islã, por exemplo, está impossibilitado de fazer. Nesse sentido, certa margem de liberdade na construção política é inerente ao conceito cristão de fé e da relação entre a Igreja e o Estado. Mesmo a noção da DSI de subsidiaridade entende que a construção política se faz de baixo para cima, partindo da organização da própria sociedade. O máximo que a Igreja poderia fazer é fornecer a "substância espiritual" para o aperfeiçoamento da natureza. Embora eu não veja a igreja da forma como o catolicismo vê, ela não está errada em sua estrutura. Há princípios defesos pela fé cristã, mas em nenhum lugar da Escritura se diz em que tipo de sociedade a Igreja deve viver. O Cristianismo não nasceu para ser uma "fé civilizacional", pois foi feita para estar entre todos os povos e tipos de governo, embora se subentenda que a fé leva a certo tipo de transformação até mesmo no sentido da estrutura cultural, e por isso política - mas isso nem mesmo é decisivo.

      O que eu quero que você entenda é que o liberalismo é mais resultado do tipo de escolha que se faz, do que o resultado de uma agenda pronta. Se você for pegar a obra do Adam Smith, você vai perceber que o "Riqueza das Nações" é um apêndice muito longo de uma obra sua chamada "Teoria dos Sentimentos Morais" - um negócio bem Inglaterra do séc. XVIII mesmo. Então ele via a "economia" como uma disciplina de filosofia moral. E toda noção que ele tinha de "economia" estava fundado como que em uma "disposição providencial" na qual a distribuição de bens via mercado, pelas leis do mercado, era capaz de produzir o maior bem possível - mais do que as regulamentações estatais (que eram defendias por monges, pelo que dá a entender a obra). Obvio que como cristãos devemos fazer a devida reflexão sobre a ordem da justiça em uma economia de mercado, e mesmo disciplina-la, como eu mesmo defendo. O problema da ordem em uma sociedade livre é a moral média da população, e é por isso que nesse contexto, se não houver uma religiosidade profunda, e uma ordem moral que surja mais de certas instituições subsidiárias como a Igreja, Exército e associações, tudo vai para o espaço - e certo sucesso dos EUA foi conseguir equilibrar essas coisas, pelo menos a princípio. Mas quando o poder religioso entra em declínio, é muito provável que a ordem política também vá para o espaço.

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    3. E com isso que quero mostrar também que a ordem política depende muito mais para o seu estabelecimento de certa "ordem na alma" da população do que certos arranjos. Não há ordem política que suporte o poder corrosivo de uma conjunto de almas degradadas. Mesmo em uma filosofia tão crítica à democrática como a de Platão há a confissão de que seja em uma ordem monárquica ou aristocrática, a corrosão institucional é um fato que só espera o seu tempo para ocorrer. O peixe sempre começa a apodrecer pela cabeça. Então, certo apreço que tenho ao arranjo complexo do Estado moderno - mais complexo do que em qualquer outro tempo da história - não me deixa muito iludido. Mas também não recorro a certas saídas românticas que afirmam que a solução está no passado. Para mima a seta do tempo só tem uma direção, e é muito melhor lidarmos com aquilo que temos, e aperfeiçoa-lo, do que destruí-lo de uma vez por todas, sem saber o que disso pode surgir. Se for ocorrer alguma mudança radical, que se tome o exemplo da Revolução Americana mesmo, que tinha tudo muito pensado para estabelecer algo novo, porque fundado naquilo que havia ocorrido antes. E que os cristãos não traiam a sua fé buscando, em meio a tudo isso, um lugar ao sol.

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