quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Χωρὶς Θεοῦ; Ou: Hebreus 2.9, a Crítica Textual e a Morte de Cristo Sem Deus

     A crítica textual é a ciência bíblica que tem a importante tarefa de recolhimento e análise comparada dos vários códices1, papiros2, pergaminhos3 etc. dos textos bíblicos afim de promover uma verdadeira análise com a finalidade de estabelecer a confiabilidade daquele texto bíblico que você temos em mãos, já que hoje não existem aqueles textos que chamamos de autógrafos, que são os textos originais compostos pelos apóstolos e evangelistas. 
    Tendo isso em vista, podemos compreender a importante tarefa empreendida pelos copistas ao longo dos séculos, pois eles nos legaram através do difícil trabalho de compilação de textos, tudo o que temos a respeito da Escritura Sagrada. Mas nesse trabalho, e principalmente através do trabalho da critica textual, é possível ver mediante análise comparada certas variações de termos e acentos que, em certo sentido, nos dão outras interpretações possíveis que, no entanto, não são capazes de destruir o sentido teológico final daquela bíblia que geralmente temos em mãos, mas que nos dão a possibilidade de entender a mente teológica que se valia de tais variações.
     Tendo esclarecido isso, passemos para o interessante caso de Hebreus 2.9., onde há uma variante usada por vários pais e presente em unciais4, mas que foi preterida pelo Textus Receptus5, assim como pelo Texto Crítico6. O texto que comumente lemos em nossas bíblias é traduzido da seguinte passagem em grego: ὅπως χάριτι θεοῦ ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου, e que traduzo como: para que, por graça de Deus, provasse a morte por todos [os homens]. Esse texto está presente em 46א, A, B, Ψ, a maioria dos textos bizantinos etc. Mas uma variante encontrada em alguns pais e unciais seria esta: ὅπως χωρὶς θεοῦ ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου, e que traduzo como: para que, sem Deus, provasse a morte por todos [os homens]. Trata-se de uma leitura alternativa que podemos encontrar em 0246, 424, em um citação de um fragmento de Orígenes - cuja obra foi preservada apenas em tradução -, em Teodoro, Teodoreto, em um citação que Jerônimo faz de Ambrósio, em Virgílio Fulgêncio etc8. 
    O parecer de Roger L. Omanso em seu famoso Variantes Textuais do Novo Testamento9, sobre essa variação é que o apoio sólido vai para a variante χάριτι θεοῦ (cháriti theoû - graça de Deus), embora um número bem expressivo de pais, no Ocidente e no Oriente, assim como vários manuscritos gregos em versões antigas apoiem a variente χωρὶς θεοῦ (choris theoû - sem Deus, separado de Deus)10, lembrando que o aparato crítico presente no texto que indicamos não é exaustivo.
    Como explicação àquilo que Omanso chama de a leitura mais difícil, ele afirma que alguns pais interpretaram esse texto no sentido de que o sofrimento de Cristo se aplica à natureza humana passível, e não à natureza divina impassível - e em apoio a essa leitura ele cita Ellingworth e Huges. Um erudito moderno que apoia a variante em questão é Barth Ehrman em seu The Orthodox Corruption of Scripture p. 146-15011. 
    Em acréscimo a essa possibilidade, há ainda outras duas possibilidades citadas por Omanso, uma das quais se explica como uma confusão em função de uma possível nota marginal feita por um copista em um texto de 1Co 15.27b, e em virtude da semelhança entre os termos  χωρὶς e  χάριτι. Outra possibilidade, mais interessante, que cito aqui: Por outro lado, χωρὶς θεοῦ pode ser uma alusão às palavras de Jesus na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"12, que a partir da versão grega do Evangelho de Mateus em Mt 27.46 seria: θεέ μου θεέ μου ἱνατί με ἐγκατέλιπες.
    Obviamente que muitos tem levado até aqui a questão da teologia da Substituição Penal ao considerar esse texto. Mas é bom lembrar que há de se ter o devido cuidado aqui, pois muitos erros podem ser cometidos em um reta consideração sobre essa teologia. Ainda que a variante χωρὶς θεοῦ se refira ao texto de Mt 27.46, ou a Mc 15.34, tenham em mente que nem mesmo a teologia da substituição penal afirma a literalidade de uma morte sem Deus de Jesus. Lembrando as palavras de Calvino: 
    Ora, ainda que é tomado de desmedida agonia, não deixa, entretanto, de chamar Deus Seu [Àquele] de Quem Se exclama desamparado13, sendo que antes havia declarado: Mas, se bem que [nEle] o divino poder do Espírito Santo se ocultou por um momento, de sorte que desse lugar à fraqueza da carne14, deve-se, não obstante que a tentação [procedente] da sensação de dor e do medo foi tal que não conflitasse com a fé15.
    Sobre esse texto, em especial sobre o ocultamento do Espírito é bom ter em mente que aqui não está implicada uma separação real entre o Filho e o Pai na cruz, já que o que deve ser visto aqui não é uma separação ontológica, mas sim uma ocultamento de certo influxo da graça no que toca a humanidade de Cristo. É bom conservar em mente que aqui não está implicado o desespero de salvação, do qual só o absolutamente separado de Deus pode sofrer. E sobre esse ocultamento é bom conservar em mente que Calvino afirma um não conflito com a fé, fé essa que é dom do Espírito. Sobre essa questão, à luz do abandono de Cristo na Cruz, Turretini explica: 
    Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32). Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásticos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus16.
    Mesmo à luz de uma fortuna crítica que concorre com essa "leitura difícil" do χωρὶς θεοῦ, como diz Omanso, há certo amparo na Escritura para o uso teológico legítimo dessa variação, muito embora o texto majoritário dê sustento suficiente para a consideração de que seja χάριτι o termo presente no texto original. E em que pese a distância semântica entre os termos, eles não são de impossível harmonização, desde que χωρὶς seja compreendido não de forma absoluta, como provavelmente queriam os nestorianos17.  
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1] Os códices são formados por um conjunto de folhas sobrepostas unidas geralmente por uma costura e uma borda. Foi popularizada por cristãos que usavam esse tipo de técnica para unir em um bloco apenas os vários escritos canônicos. Os códices certamente deram a forma para o tipo de livro que usamos hoje em dia. 
2] Os papiros eram papéis formados a partir do junco e são conhecidos por terem sido produzidos em grande escala na cidade de Biblos, no Egito. Os textos do Antigo Testamento mais antigos conhecidos estão escritos nesse tipo de material.
3] Os pergaminhos foram, provavelmente, desenvolvidos no II séc. a.C. na cidade de Pérgamo, de onde recebeu seu nome. Consistindo de peles de animais, os pergaminhos se mostraram mais duráveis do que os papiros. Cerca de 75% dos manuscritos gregos da Escritura são pergaminho.  
4] Os unciais são escritos que usam apenas letras maiúsculas. Seu uso se deveu ao fato de que eram mais fáceis de ser escritos, embora segundo H. Roberts, eram de difíceis de serem lidos. 
5] O Textus Receptus, ou o Texto Recebido, ou mais especificamente o Texto Majoritário, trata-se do texto composto a partir da família dos textos bizantinos do Novo Testamento e que foi a base para muitas traduções da Bíblia na era moderna, como o Texto de Lutero, a King James, e mesmo a tradução feita por João Ferreira de Almeida.
7] O Texto Crítico surgiu no século XIX a partir do aperfeiçoamento do Crítica Textual. Um trabalho influente na produção de um Texto Crítico foi empreendido por Wesltscot e Hort, lembrando que há não um texto crítico apenas, mas vários, como é o caso Nestlé-Aland, ou mesmo o Novo Testamento Grego produzido pelas Sociedades Bíblicas Unidas. Se baseando em certos princípios, o texto crítico apela para um fortuna textual mais variada do que o Textus Receptus, ainda que esses textos sejam minoritários. As descobertas de manuscritos mais antigos - como vários papiros, a exemplo do próprio 46, e muitos outros -, pôs em marcha uma análise crítica, que ainda permanece controvertida, mas que tem a sua importância em estabelecer textos tradicionalmente tidos como provenientes dos autógrafos.  
8] Um apanhado mais completo da presença dessas variantes você encontra no aparato crítico do Novo Testamento Grego da SBB.
9] OMANSO, Roger L. - Variantes Textuais do Novo Testamento; Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. 
10] Ibid. p. 471
11] Ibid. p. 472
12] Ibid. p. 472
13] CALVINO, João - Institutas da Religião Cristã. Ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. vol. II. cap. XVI.13, p. 284. 
14] No contexto da explicação de Calvino não é lícita a interpretação de fraqueza da carne se refira ao pecado, se não que à fragilidade e à sujeição à dor da qual a divindade não está sujeita. Dado toda a argumentação de Calvino nas Institutas, a interpretação adversa a isso só pode ser concebida como tolice.
15] CALVINO, Ibid. 248
16] TURRETTINI, François - Compêndio de Teologia Apologética. vol II, Ed. Cultura Cristã. 2011 p. 429.
17] No aparato crítico do Novo Testamento Grego da SBB há evidências de que os nestorianos se valeram do χωρὶς θεοῦ.  

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