segunda-feira, 29 de novembro de 2021

A Dupla Via de Acesso a Deus; Ou: Teófilo, Orígenes e Agostinho e a Questão das Virtudes Éticas e Dianoéticas

    Um dos aspectos mais interessantes do pensamento dos antigos teólogos cristãos é que o conhecimento de Deus exige precondições que podemos chamar, segundo o que se convencionou na filosofia, de precondições éticas, assim como precondições dianoéticas, ou seja, precondições morais e intelectuais. A compreensão desse tipo de pensamento é importante em virtude da percepção que essas disciplinas nos dão a respeito das disciplinas espirituais tal como compreendidas pelos teólogos cristãos antigos, algo que é de imensa validade para nós.

    Agostinho nesse sentido afirma:

Esta disciplina é a própria lei de Deus que, permanecendo sempre fixa e inabalável nele, quase se inscreve nas almas sábias para que tanto melhor saibam viver e tanto mais sublime e mais perfeitamente a contemplem com sua inteligência e com maior empenho a guardem em sua vida. Esta disciplina impõe aos que desejam conhecê-la uma dupla ordem, da qual uma parte se refere à vida, outra à erudição1.

    Em outras palavras, Agostinho exorta aqui que se cultive certas virtudes que podemos chamar de "éticas", ou virtudes morais, e as virtudes "dianoéticas", que seriam as virtudes da mente, afim de alcançarmos uma unidade com Deus.

    Mas Agostinho não está isolado nessas considerações, pois essas podem ser rastreadas desde os primeiros apologistas. No II século d.C., Teófilo de Antioquia discorreu sobre as condições morais e intelectuais para a apreensão de Deus nestes termos:

De fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos. Do mesmo modo, ó homem, tu tens os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações2.

    Das consideradas "virtudes dianoéticas" para a visão de Deus, Teófilo parte da consideração de que há uma possibilidade de se conhecer Deus partindo de uma comparação entre as ações de Deus no mundo e o próprio Deus e as relações entre a alma e o corpo, ou partindo de uma reflexão sobre a estrutura da própria criação ou sobre as relações humanas, ou seja, partindo da "analogia entis":

Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras [...] Assim como o grão da romã, do interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus pelas suas obras e manifestações de seu poder?3 (Ibidem 5).

    Orígenes que também enxerga a visão de Deus como o "fim" (τελος) do homem, afirma que há precondições morais para essa visão de Deus:

Além disso, segundo o que afirmamos, Deus, não sendo um corpo, é invisível. Mas através daquele que se entrega à contemplação, ele pode ser contemplado com o coração, quer dizer, com o espírito, e não com qualquer coração, mas com o coração puro. Pois não é permitido que o coração manchado veja a Deus, mas é preciso a pureza para se poder dignamente contemplar aquele que é puro4.

    Da mesma forma, partindo da relação entre o sensível e o inteligível, Orígenes afirma a possibilidade de conhecimento de Deus mediante o conhecimento do mundo, o que constitui o método mesmo da analogia entis:

E não é em obras pouco acessíveis, lidas somente por pequeno número de eruditos, mas sim mais populares, que está escrito: “Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas” (Rm 1,20). Decorre daí esta conclusão: embora os homens nesta vida devam partir dos sentidos e do sensível quando querem se elevar até a natureza do inteligível, de modo algum devem se prender ao sensível. Tampouco diremos que é impossível sem o uso dos sentidos conhecer o inteligível, ainda que se proponha a questão nestes termos: quem pode conhecer sem o uso dos sentidos? Provaremos que Celso não teve razão em afirmar que isso não tem a ver nem com o homem nem com a alma, mas com a carne5.

    De forma mais ampliada e sistematizada, Agostinho especifica o que seriam tanto as condições morais como intelectuais para a apreensão da verdade divina. E começando por discorrer sobre os pré-requisitos morais para a compreensão da verdade ou do Logos divino, Agostinho prescreve disciplinas morais como segue:

Portanto, os jovens que se dedicam ao estudo dessa disciplina devem viver de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com espetáculos; da indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja; das ambições de honras e poderes; do imoderado desejo do próprio louvor. Saibam que o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo para toda a sua esperança. Não façam nada com fraqueza, nada temerariamente. Nas faltas de seus familiares reprimam a ira ou a refreiem de tal modo que ela pareça vencida. Não odeiem a ninguém. Não queiram curar todos os males. Observem muito ao punir para que não seja demasiado, e não seja pouco quando o castigo é reconhecido. Não deem castigo se não servir para melhorar e não perdoem se isto for ocasião para piorar. Julguem amigos seus todos aqueles sobre os quais vocês tenham recebido poder. Procurem servir-lhes de tal modo que vocês tenham vergonha de ter poder sobre eles; tenham poder sobre eles de tal modo que tenham prazer em servir-lhes. Nos pecados dos outros não se incomodem se eles não recebem a correção de boa vontade. Evitem com toda precaução as inimizades, suportem-nas com toda equanimidade, acabem com as inimizades o quanto antes possível. Em toda conversação e convivência com os homens basta observar este provérbio popular: Não façam a ninguém o que não queiram que lhes façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos. E cuidem para se aperfeiçoar antes de chegar à idade para ocupar um cargo de senador ou, melhor, já na juventude. Mas, se alguém se converte em idade avançada a estas coisas, não pense que não lhe diz nenhum respeito este preceito: pois certamente guardará estas coisas com mais facilidade pela sua idade. Em todo tipo de vida, em qualquer lugar e ocasião procurem ter ou fazer amigos. Mostrem condescendência com as pessoas dignas, mesmo que elas não esperem isso. Não se perturbem por causa dos soberbos e de modo algum sejam como eles. Vivam de maneira apropriada e conveniente. Venerem a Deus, pensem nele, busquem-no apoiados na fé, esperança e caridade. Desejem a tranquilidade e um currículo seguro para seus estudos e para todos os seus colegas. Almejem uma mente boa e uma vida pacata para si mesmos e para todos aqueles para os quais vocês possam desejar6.

    Esse suíte imenso de prescrições exemplifica o itinerário moral para a visão de Deus, coisa já presente entre outros filósofos além dos filósofos cristãos. Mas esse esforço moral não é unilateral, pois é seguido também em paralelo com certas disciplinas que visam a elevação da mente para essa empreita. Nesse sentido Agostinho afirma:

    A seguir, exporei como devem instruir-se os estudiosos que já orientaram sua vida segundo o que foi dito acima. Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razão. Em função do tempo, a autoridade tem prioridade, mas em função da própria coisa a prioridade está com a razão. Uma coisa é aquilo para o qual se dá prioridade ao agir e outra o que se tem em maior apreço na intenção. Por isso, embora à multidão ignorante pareça mais saudável a autoridade dos homens bons, a razão se adapta mais aos instruídos7.

    Avaliada a "dupla via de conhecimento", ou seja, pela autoridade e pela razão, Agostinho descreve o que seria propriamente a razão, e sua utilidade para o conhecimento divino:

A razão é o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexão entre as coisas que se conhecem. Utilizar-se dela como guia para entender a Deus ou a própria alma que está em nós ou em toda a parte, é próprio de pouquíssimos no gênero humano, não por outro motivo senão porque para aquele que está disperso nos assuntos dos sentidos é difícil voltar-se a si mesmo8.

    Aqui o hiponense segue a tradição filosófica que moldou muito o seu pensamento, ou seja, o platonismo, que também afirma ser a posse da razão privilégio de poucos, além de fazer estabelecer o paralelo entre o múltiplo e o mundo sensível caracterizado pela da dispersão da atenção (na sensualidade e demais prazeres e objetos de cobiça), e o uno à razão. Indo adiante, Agostinho expõe o como que as disciplinas liberais podem ser vias de acesso à verdade, isto é, como elas podem ser vias de ascese mental pelas quais afiamos a nossa razão, tornando-a um instrumento capaz de captação da verdade naquilo que lhe é possível. Assim ele destaca as disciplinas da gramática, dialética, retórica, a, aritmética, música, a geometria e a astronomia, ou seja, as sete disciplinas das artes liberais, senso estas matérias propedêuticas (que perfazem o ensino básico, ou introdutório) à compreensão da realidade, realidade que envolve a realidade do mal, da ordem do mundo, da distinção entre sensível e inteligível e da natureza da alma, assim como natureza de Deus.

    Após discorrer sobre os pré-requisitos morais, assim como os requisitos intelectuais para a contemplação de Deus, Agostinho afirma sobre o fim dessa praeparatio:

Estas e muitas outras coisas a alma bem instruída fala consigo mesma e desenvolve dentro de si. Mas não quero prosseguir nessas reflexões para que, uma vez que desejo ensinar-lhes sobre a ordem, não venha eu a ultrapassar o modus (comedimento), que é o pai da ordem. Pois a alma se eleva gradativamente à perfeição de costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão [...]

Mas quando a alma se adorna e se ordena e se torna harmoniosa e bela, ousará ver a Deus e a mesma fonte de onde mana toda a verdade e ao próprio Pai da Verdade. Grande Deus, como serão aqueles olhos! Como serão puros e formosos, vigorosos e firmes, serenos e felizes! E que é aquilo que eles veem? O que, digam-me. O que podemos julgar que seja, o que avaliar, o que falar? Diariamente ocorrem-nos palavras, mas que são todas elas manchadas de coisas muito vis. Nada mais direi senão que nos é prometida a visão da beleza, por cujo reflexo são belas as demais coisas e se tornam feias se comparadas com ela.10.

    Obviamente que Agostinho não nega que os não instruídos nessas artes não possam vir a conhecer a Deus, muito embora ele tenha a tendência a não considerar os indoutos como felizes neste mundo, como segue:

Mas aqueles que, satisfeitos apenas com a autoridade, se aplicam com constância a uma vida de bons costumes e desejos justos, porque ou desprezam a aprendizagem ou não têm força de vontade suficiente para instruir-se nas boas disciplinas liberais, não sei como poderia chamá-los de felizes nesta vida, mas creio firmemente que, logo que saírem deste corpo, terão maior facilidade ou maior dificuldade em liberar-se conforme tenham vivido mais ou menos retamente11.

    Contudo não se deve desprezar que esse livro, mesmo que evidentemente profundo, foi no início carreira teológica de Agostinho. Assim, nas Retratações, texto escrito no cume de sua maturidade teológica, Agostinho faz certos reparos críticos à sua obra A Ordem, como se segue:

Na mesma época, escrevi também dois livros sobre A Ordem, no intervalo dos escritos sobre os acadêmicos. É importante a questão de que neles se trata, ou seja, se a ordem da divina Providência abrange todas as coisas boas e más. Ao perceber que o assunto era difícil de ser compreendido, e muito mais difícil para a percepção daqueles com os quais dele tratava, preferi deixar de discutir e preferi falar da ordem no aprender, com a qual se pode progredir do que é corporal para o não corporal.

Mas, nestes livros, desagrada-me também ter intercalado muitas vezes o termo "fortuna". E por não ter acrescentado "do corpo", ao mencionar o sentidos corporais. E por ter dado muita importância às disciplinas liberais, ignoradas por muitas pessoas santas, e alguns, que as conhecem, não são santos12.

    É certo que todos esses arrazoados expostos acima indicam disciplinas a serem executadas por nós afim de se garantir o conhecimento de Deus, como que sugerindo uma via de acesso que parte de baixo para cima. Mas se analisarmos bem a questão esse tipo de compreensão não pode ter lugar mesmo entre os autores que proferiram essas palavras. Não há, em absoluto, potência no homem para "achar a Deus". Todas essas disciplinas são como são, ou seja, praeparatio, ou preparações que não garantem em absoluto que o objeto a que se visa será dado. Agostinho, o grande pai do monergismo no cristianismo antigo, evidentemente entende que achar a Deus é graça e que essa ou vem de Deus ou não vem de lugar algum.

    Agostinho comenta essa questão relativa à necessidade da graça a fim de encontrarmos a Deus:

Pelágio prossegue e diz no livro antes citado: "Aquele que faz bom uso da liberdade, entregar-se totalmente a Deus, mortificando sua vontade de modo que pode dizer com o apóstolo: 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (GL 2,20); e deposita seu coração nas mãos de Deus para que ele 'o incline para qualquer parte que ele quiser' (Pr 21,1)".

É grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline o nosso coração para onde quiser. Mas essa grande ajuda nós a merecemos, conforme ele disse na sua loucura, quando, sem outra ajuda, que a do livre-arbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito. E Ester bens tão extraordinários, segundo ele [Pelágio], nós os conseguimos somente pela liberdade do arbítrio. E assim, com estes méritos precedentes, conseguimos que ele incline nosso coração para onde quiser.

E como pode chamar-se graça, se não é dada de graça? Como pode chamar-se graça, se é pagamento do que é devido? Como dizer que é verdade o que diz o apóstolo: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho'? (Ef 2,8-9). E novamente: 'E se é por graça, não é pelas obras ; do contrário, não é mais graça'? (Rm 11,6)13.

    Nesse ponto se torna óbvia a afirmação de que inclinar-se a Deus é algo possível unicamente pela graça, assim como encontra-lo. Também Orígenes, teólogo cujas afirmações polêmicas no faz julga-lo como alguém que cria ser a graça de Deus recompensa de méritos pessoais, afirma no Contra Celso nada menos de que a graça divina é aquilo que nos proporciona o que não podemos obter pela nossa natureza, como se segue:

Platão pode dizer: “Descobrir o autor e pai deste universo é muito árduo”: ele dá a entender que não é impossível para a natureza humana descobrir a Deus como ele merece ou, se não como ele merece, pelo menos mais e melhor do que a multidão. Se isto fosse verdade e Deus fosse realmente descoberto por Platão ou por algum dos gregos, eles não teriam venerado, chamado a deus, adorado nenhuma outra coisa, quer abandonando-o, quer associando nele coisas incompatíveis com sua majestade. Nós, porém, sustentamos que a natureza humana não é capaz, em si mesma, de modo algum, de procurar a Deus e descobri-lo com pureza, a não ser que seja ajudada por Aquele que procuramos14.

    A questão das disciplinas espirituais deve ser bem localizada afim de evitarmos equívocos. E como podemos perceber elas não são garantias de acesso a Deus em sentido absoluto, e isso porque, em 1º lugar somos feridos pelo pecado, e em 2º porque tal acesso é realidade absolutamente aberta a nós pela graça. Mas não podemos ignorar que é unicamente no estado da natureza intacta que podemos ter unidade com Deus, ou seja, quando amamos verdadeiramente (condição moral), e assim podemos ver a Deus verdadeiramente (uso pleno da faculdade intelectual ou noética).

    Olhando pelo ângulo do fim último, ou considerando a questão escatologicamente, não podemos ignorar que a realidade dessas disciplinas e seus fins se apresentam para nós como um padrão absoluto que deve ser amado e sempre buscado, pois tal padrão é, como diz Agostinho, uma lei eterna para nós, e mesmo no estado de imperfeição devemos buscar realizar em tudo o que somos a medida absoluta de Deus, a qual é, no fim, Amar a Deus de toda nossa alma, força e entendimento, e amar o nosso próximo como a nós mesmos.  

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[1] AGOSTINHO. A Ordem. II.VIII.25

[2] TEÓFILO. A Autólico I.2

[3] Ibid. 5

[4] ORÍGENES. Contra Celso. VI.69

[5] Ibid. VII.37

[6] AGOSTINHO. A Ordem II.VIII.25

[7] Ibid. IX.26

[8] Ibid. XI.30

[10] Ibid. XIX.50,51

[11] Ibid. IX.26

[12] Idem. Retratações. I.3

[13] Idem. A Graça de Cristo e o Pecado Original. I.31

[14] ORÍGENES. Contra Celso.VII.42

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