domingo, 12 de dezembro de 2021

Deuteronômio, a Guerra e a Providência

O livro de Deuteronômio oferece uma leitura teológica interessante de certos eventos que devem ser lidos ao lado da história corrente dos israelitas, de modo que a leitura teológica acaba oferecendo uma iluminação da história corrente. Em Dt 2.24-37 há a interessante história da conquista dos israelitas das terras de Seon, rei de Hesbom. Ao atravessar o rio de Arnom Deus prometeu a Moisés "infundir pavor e medo" no coração de todos os povos a respeito dos israelitas, ou seja, Deus iria voltar a mão dos povos de modo a esses serem hostis àqueles, criando uma ocasião em que, pela defesa, o povo de Deus tomariam posse da terra..

Uma das coisas que poucos prestam atenção é que o modo de conquista da Terra de Canaã por parte dos israelitas em muitos casos não envolve um ataque direto aos habitantes, mas um ataque baseado na legítima defesa. No caso em questão o procedimento de Israel seria o de "pedir passagem", "oferecendo paz" com a promessa de pagamento por aquilo que eles viriam a consumir de água e alimento dessa terra (Dt 2.27-29). A resposta de Seon ao ao apelo dos israelitas, no entanto, foi hostilidade e guerra, pois, segundo Deuteronômio, seu coração estava perturbado e "cheio de pavor".

Nesse momento a profecia intervém com uma interpretação iluminadora da história, e o teólogo do Deuteronômio afirma: "Mas Seon [...]não quis deixar-nos passar; pois o Senhor, o Deus de vocês, tornou-lhe obstinado o espírito e endureceu-lhe o coração, para entregá-lo nas mãos de vocês, como hoje se vê. [...] Estou entregando a vocês Seon e a sua terra. Comece a ocupação, tome posse da terra dele" (Dt 2.30, 31).

Há dois ângulos que o teólogo de Deuteronômio nos oferece pelos quais podemos ler esse evento: o ângulo histórico e teológico: 1) Pelo ângulo histórico o que vemos é um povo estrangeiro pedindo passagem por uma terra, e que é hostilizado pelo governante da terra - transgredindo a venerável lei da hospitalidade, tão importante no mundo antigo -, se defendendo da agressão; 2) Pelo ângulo teológico vemos Deus concorrendo com a história, conduzindo a história até o seu fim querido, "endurecendo" o coração de Seon segundo seu desígnio providencial.

O que podemos compreender dessa história é que se perdermos de vista a distinção entre a esfera histórica e a esfera providencial perderemos a rica complexidade do evento, oferecendo a ele interpretações simplistas e até mesmo perversas. É justamente na perda dessa complexidade que surgem acusações absurdas do tipo que imputa massacres dolosos ao povo do Antigo Testamento; também aqui surgem justificativas de gente perturbada que julga conquistar, por meios lícitos e ilícitos, coisas em nome de Deus só porque mete Seu nome na boca. A questão é que nem nas guerras deixou de exigir a reta justiça por parte dos seus Aquele que da história é Senhor.

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