sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Cristo no Coração da Tempestade; Ou: N. T. Wright e o Significado da Crucificação

    Com todas as conhecidas oposições de N. T. Wright sofre e tem sofrido em seu pensamento teológico, muito em função de ser ele contado entre os propositores da polêmica NPP (Nova Perspectiva Paulina), como sempre ocorre, seu nome é mais comentado do que seu pensamento realmente conhecido. O que geralmente se conhece a respeito de suas posições teológicas vem na rabeira de comentários de blogs ou na vazão de bílis representada em forma de letras aqui e ali. Contudo há algo da sua reflexão a respeito de cristologia que tem considerável valor, principalmente por sua tentativa de promover um cristologia bíblica integral, longe de dissecção abstratista que a cristologia não raro sofre nas mãos de teólogos "modernistas" ou mesmo de escolas consideradas "conservadoras".

A bem da verdade, certa acusação que pesa contra Wright de que ao lê-lo você tem certa impressão de que ele está desenterrando uma verdade oculta que o cristianismo manteve oculto por uns 600 anos tem sua razão de ser. Mas mesmo assim é produtivo dar ouvidos à sua teologia - mesmo que seja necessário lê-lo com certa suspensão de juízo. É possível ver vez ou outra em seus livros a afirmação incômoda de que certas escolas, pessoas ou teologias centenárias estão "lendo a bíblia de forma errada", e até mesmo que o Credo Niceno obscureceu os sinóticos e a mensagem sobre o Reino de Deus, e com isso perdeu o valor da militância temporal da Igreja e do discipulado, ao saltar da concepção de Cristo pelo Espírito para o padecimento sob Pôncio Pilatos1. Daí surgiram certas tendências enviesadas de reduzir o Evangelho à crucificação - tendência ocidental -, dando espaço para teologias atrofiadas como a de Rudolf Bultmann, o qual questionou a historicidade dos evangelhos, concentrando o valor da mensagem do Novo Testamento no confronto existencial da proclamação com a situação do receptor da mensagem e a "transformação da mente" daí decorrente. Nada de história, mas sim uma nova consciência de si. E mesmo que teólogos e eclesiásticos conservadores neguem esse reducionismo bultmanniano, seguem seu espírito ao reduzir a mensagem do evangelho à "justificação", por exemplo. A clara fratura existente entre teólogos conservadores - tendo em Bultmann seu exemplo reducionista mais extremado - e teólogos liberais que enfatizam a ação histórica e política da Igreja e a "moral concreta", como ocorre em teólogos como Harnack e Troelsch, resultam, segundo Wright, da ausência de uma "leitura total" da bíblia e da falta de uma compreensão total das obras e da vocação de Jesus e da mensagem dos Evangelhos, pois estes mostram na verdade "Como Deus se Tornou Rei".

    Separadas as coisas, vemos que a teologia de Wright surge como uma proposta de cura da reflexão excessivamente prismática das escolas teológicas. A questão é que mesmo em seus cortes abstratos, essas escolas ainda representam por certo ângulo certas verdades da mensagem cristã, tal como a luz quando direcionada a um prisma é refratada em várias cores. Segundo Wright a mensagem do Evangelho não se parece com a tentativa de reconstrução histórica da mensagem do Evangelho - ex. em Albert Schweitzer -, onde Jesus se dirige a Jerusalém para continuar seu programa de reforma e é acidentalmente esmagado pela força política local2. Assim, Jesus não foi meramente um "homem bom esmagado pelo 'sistema', como outro revolucionário zeloso deu sua vida pela causa", embora haja uma parca razão nessa forma de pensar3. Também Jesus não foi apenas agente meramente de uma "manifestação do amor divino que influencia moralmente a seguirmos seus passos"4, embora haja também verdade nisso. Também Jesus não é meramente um "modelo representativo", o qual atravessa a morte, nos capacitando a atravessar a atravessa-la por um "novo caminho"5, mesmo que haja razão nisso. Assim, Jesus não é agente de uma transição, no qual ele se dá a um Deus que irado com os homens satisfaz a sua ira ao puni-lo6. Mesmo que ele negue essas teologias consideradas em sua abstração própria, Wright ainda assim afirma que elas tem seus pontos a serem defendidos7.

    Consideradas em seu aspecto formal abstrato, Wright tenta busca por em ordem todas essas tendências teológicas para unifica-las em um sistema teológico ordenado, seguindo uma teologia bíblica que faz jus à vocação de Jesus como messias de Israel e como salvador da humanidade. Em primeiro lugar Wright busca unir as expectativas messiânicas segundo um modelo bíblico determinado. Segundo seu parecer a consciência e vocação de Jesus seguem certos padrões, como expressos por exemplo no Salmo 22, onde o imenso sofrimento diante do abandono divino é seguido do júbilo pela salvação do Senhor. Esse é um tipo de leitura que considerada sem uma visão correta das coisas pode soar ilógica, mas que recebe seu devido significado se iluminada pela história de Jesus. Também unidas aos aspectos messiânicos de Cristo como rei de Israel estão unidas as considerações sobre o templo, o qual recebe um novo significado à luz de Jesus como o portador da presença de Deus. Isso é claro na teologia da ceia apresentada por Cristo, ceia na qual são despedidas nos símbolos a presença e o "novo sacrifício". Aqui é manifesto o "novo templo", templo que agora está além da estreiteza nacionalista da decrépita Israel histórica. Assim, Jesus oferece nova resistência às potências das trevas por um novo caminho, resistência não meramente contra Roma, mas sim contra o poder diabólico que a sustenta, e assim faz destruindo essas potências do alto da Cruz, onde Cristo estabelece seu trono, obedecendo a vontade do Pai. Vendo por esse ângulo os Evangelhos tem uma mensagem histórica muito determinada, mais ampla do que o sentido vislumbrado pelos cortes abstratos nos quais, segundo Wright, as escolas incorrem.

    Comentando a partir de um olhar mais amplo sobre as teologias das escolas, Wright afirma que: 1) A morte de Jesus é exemplificativa: Vemos em cada estágio da narrativa do evangelho, trabalhado em pequenos sinais vitais, uma atmosfera de cura e perdão, de um amor poderoso em busca de resgate e restauração, conforme observamos nos detalhes iniciais da carreira pública de Jesus. Em outras palavras, ele não deixou de ser o mesmo Jesus portador do reino. Pelo contrário: o que ele faz na cruz é a culminação e a explicação retrospectiva de seu trabalho anterior8. Ou seja, a morte de Jesus é exemplificativa porque ela nos fornece o modelo segundo o qual nós mesmos devemos viver e morrer, ou seja, perdoando e restaurando. 2) Também a morte de Jesus é representativa: Da mesma forma, em segundo lugar, Jesus estava de certo modo “representando” seu povo e, por meio dele, o mundo todo. Jesus viveu em um mundo de entendimento no qual fazia sentido ver o Messias substituindo Israel e este substituindo o resto da humanidade. Contudo, ainda que o tema seja importante, não apenas nos evangelhos como também em Paulo e em outros textos bíblicos, ele mal consegue carregar o peso exigido9. 3) Essa morte é também penal: Em terceiro lugar, a morte de Jesus também foi, em certo sentido, penal. Jesus anunciou o juízo iminente de Deus sobre o seu povo rebelde, um juízo que consistiria em devastação nas mãos de Roma. Ele então vai adiante do seu povo e toma precisamente esse juízo — literal, física e historicamente — sobre si mesmo. “Não apenas em verdade teológica, mas em fato histórico, um único homem carregou o pecado de muitos”. Trata-se de uma morte penal e substitutiva, embora mais ampla e menos aberta a objeções do que outras expressões dessa teoria10.

    Todas essas coisas consideradas, cabe salientar que todas essas elaborações que Wright apresenta deve ser apresentadas em um contexto maior para que seja possível visualizar seu devido sentido. Contudo, no fim, a posição do bispo anglicano é de que em última instância a cruz sinaliza o Novo Êxodo, um novo estabelecimento pelo qual os céus são unidos à terra, ou seja, a crucificação é o meio pelo qual Deus tornou manifesto o seu reino, libertou o seu povo concedendo a ele uma nova vocação e destruiu o poder das trevas - e também a ira de Deus11, em uma ênfase muito semelhante a de Lutero e de Jerônimo em seu comentário de Mt 27. -, sendo esses os motivos pelos quais Cristo voluntariamente se colocou, como vai dizer o bispo, "dentro da tempestade"12.
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[1] WRIGHT, N. T. Como Deus se Tornou Rei. Ed. Thomas Nelson. 2019. p. 36-43

[2] Idem. Simplesmente Jesus. Ed. Thomas Nelson. 2020. p. 221

[3] Ibidem. p. 230, 231

[4] Ibidem. p. 231

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem. p. 231, 232

[11] Ibid. p. 224. Nesse trecho a colocação de Wright é essa: "Em particular, está implícito quando Jesus fala da galinha que reúne pintinhos debaixo das asas; sua intenção era ver o perigo se aproximar e absorver, em si mesmo, sua força plena (Mateus 23:37; Lucas 13:34). A ideia está presente, mais uma vez, quando ele fala do 'cálice' que deve beber; a alusão remete ao 'cálice da ira de Deus', operando por intermédio da violência destrutiva do Império Romano contra o que para os pagãos parecia ser a rebelião de súditos e um rei rebelde..."

[12] Ibid. p. 222-225

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