quinta-feira, 19 de março de 2020

Ambrósio, Agostinho, a Ceia e o Símbolo

   Sobre a questão da real doutrina acerca da Ceia, obviamente encontramos, desde os primórdios da Igreja, a afirmação referente a Ceia ser realmente o corpo e o sangue de Cristo. Personagens como Inácio de Antioquia, Justino o Mártir, Irineu de Lyon afirmam categoricamente essa forma de ver a Ceia.
   Contudo nem por isso podemos concluir daí que de fato havia uma percepção semelhante à que a Igreja romana tem de transubstanciação, embora termos como "conversão" ou "transformação pela Palavra" do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo pululem nos escritos teológicos dos pais. O "como" que isso se dá deve ser compreendido e para isso chamo como testemunhas Agostinho e Ambrósio - o mestre de Agostinho.
   Menos evidente à percepção de uma forma imediata, mas mais claro quando percebido, Agostinho afirma a partir da estrutura do livro "A Doutrina Cristã" a ideia de sacramento como sinal, incluindo aí a Ceia. Para captar o pensamento de Agostinho exposto nesse livro é necessário enxergar a estrutura do mesmo, que é dividido duas partes essenciais: 1) A parte onde ele discorre sobre as coisas tais como são em si (De rebus) e as coisas tais como significam para além de si (De signis). Na parte das "coisas" Agostinho discorre sobre as realidades essenciais da fé cristã: A Trindade, Encarnação, Ressurreição, dons do Espírito, a realidade concreta da Igreja, vida eterna e as virtudes teologais enfatizando a caridade.
   Já na parte em que Agostinho discorre sobre os "sinais", há a investigação sobre as coisas não como são em si, mas como são ao apontar para outras coisas para além de si. Aqui entram as palavras, as quatro virtudes cardeais, a Escritura, sacramentos, preparando a exposição e a inteligibilidade do método alegórico de interpretação da Escritura. Estas são suas palavras: "Agora, ao tratar sobre os sinais (de signis), advirto que não se dê atenção ao que as coisas são em si, mas unicamente ao que significam, isto é, QUE ELAS SE MANIFESTAM SINAIS DE ALGO DIFERENTE". Nesta segunda parte, no livro III.XXIV, diz: "'Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós'. Aqui, parece ser ordenada uma ignomínia ou delito. Mas aí se encontra expressão simbólica que nos prescreve comungar da paixão do Senhor e guardar, no mais profundo de nós próprios, doce e salutar lembrança de sua carne crucificada e coberta de chagas por nós".
   Já Ambrósio de Milão afirma realmente a conversão, mas também, segundo forte tendência da Escola de Alexandria, também fala da Ceia como figura e símbolo. A passagem mais contundente sobre o isso está em seu opúsculo chamado "Sobre os Sacramentos". No livro IV.XIV, diz: "Talvez digas: 'Meu pão é comum'. Mas este pão é pão antes das palavras sacramentais; depois da consagração o pão se transforma em carne de Cristo". Aqui é possível alegar que Ambrósio realmente cria na transubstanciação, se não fosse a passagem que se segue no mesmo livro IV.XX: "Talvez digas: 'Não veja aparência de sangue'. Mas há o símbolo. Do mesmo modo como assumiste o símbolo da morte [batismo], assim também bebe o símbolo do precioso sangue, para que não haja horror de sangue derramado e, no entanto, se realiza o preço da redenção. Aprendeste, portanto, que aquilo que recebes é o corpo de Cristo".
   Nos dois exemplos vemos uma mescla de conceitos que sugere a ideia de uma doutrina em transição. Agostinho é bem mais claro no seu afastamento da ideia de transubstanciação, já que se poderia afirmar em Ambrósio que por "símbolo" o que se afirma é o correspondente de "acidentes", que permanecem como sinal externo, figurativo, não consubstanciado à realidade do sacramento após a consagração. Mais aí já é colocar no pensamento deste teólogo uma compreensão não afirmada em nenhuma parte de sua teologia.

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