quinta-feira, 19 de março de 2020

Aplacando a Ira dos Teólogos

   A ideia de que a expiação não muda nada em Deus não é desconhecida dos reformadores, nem de Lutero ou Calvino, para os quais a Cruz pertence à ordem da providência divina e não uma demanda de sua essência. Aliás, nem mesmo Anselmo, e grande parte dos reformados, que concordam com a ideia de que a Cruz é uma demanda da essência divina (sua justiça), dizem que a expiação muda algo em Deus.
   Acusar uma toada literalizante no uso de uma linguagem que tem sentido antropomórfico/antropopático por parte de teólogos, ou melhor, afirmar que muitos teólogos acreditam que Deus realmente sinta uma ira em seu peito que é transmutada em paz de espírito mediante um sacrifício, é confundir o argumento. A linguagem "ira" é antropopática, pois atribui a Deus um afeto que pertence ao nível da realidade humana. Deus, em verdade, não tem afetos, e não os tem por estar acima deles, por ser o Criador deles. Mas isso não significa que a linguagem esteja errada, pois quando dizemos que Deus se "ira" focamos nas consequências destrutivas do pecado no homem que só podem ser remediadas pela graça, o que também diz respeito a uma demanda real da justiça divina em seu afastamento eterno da realidade do pecado.
   Obviamente que pela misericórdia - que também é um termo antropomórfico/amtropopático para falarmos sobre Deus - Deus, sem prejuízo da justiça, pode arrefecer os efeitos destrutivos do pecado, redimindo o homem pela graça, fazendo a justiça ser reestabelecida no pecador - a misericórdia não nega a justiça, mas a estabelece.
Mas quem nega em absoluto a validade da linguagem que afirma que Deus se "ira", ou que seja aplacado pelo sacrifício (uma linguagem comum no Antigo Testamento, e em Levítico, embora seja uma linguagem tecnicamente desliteralizada pela reflexão teológica), deveria deixar de usar o termo "compaixão" - Deus é imutável -, ou qualquer outro termo que sugira uma modificação passional no ser de Deus.
   Devemos parar de achar que podemos suplantar a linguagem religiosa da revelação (que é antropomórfica/antropopática) visando com isso destruir "teologias inadequadas", movidos por um zelo que pode confundir antes de esclarecer.

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