segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O Sacrifício de Isaque

    A espiritualidade cristã está indissoluvelmente ligada ao sacrifício. É dito que o sacrifício está vinculado de forma vitalícia ao amor, pois o amor estabelece uma ordem de prioridades pela qual colocamos no topo da nossa hierarquia de valores aquilo pelo qual tudo o mais deve ser sacrificado, incluindo a nossa própria vida – ora, só sacrificamos tudo o que é nosso àquilo que mais amamos e sem o qual a nossa vida não teria qualquer sentido. E não é verdade que a mentalidade moderna dispensou de uma vez por todas a noção de sacrifício, ela só substituiu o seu objeto, pois ao destituir a Deus como a medida de todas as coisas o homem moderno fez de si essa medida, e como resultado tudo o mais serve para ser sacrificado no altar da sua vontade pessoal, dos seus desejos e apetites. A lógica do sacrifício é impossível de ser rompida uma vez que todos nós temos fins e prioridades; enfim, todos nós amamos algo pelo qual tudo o mais, ao nosso ver, deve se dobrar, pois o amor ordena todos os fins em ordem a si mesmo, pois, como diziam os escolásticos: o fim é o primeiro na ordem do causar.

    O sacrifício de Isaque ilustra de forma exata o lugar do homem diante de Deus. Em Gn 22.1ss somos informados de que Deus testou (נִסָּ֖ה = nissāh) a Abraão, pedindo a ele Isaque em sacrifício. A história pode causar certo estranhamento em nós, mas devemos lê-la em seu contexto próprio a fim de extrair dela todo o seu sentido. É importante ter em mente que sacrifícios humanos não eram coisas raras no contexto do antigo oriente próximo, como nos atesta a escritura (2Rs 3.27), onde o Rei de Moabe sacrificou seu filho, causando indignação geral contra Israel que pressionava Moabe. A despeito dos detalhes dessa história, a lei mosaica já trazia um veto rigoroso contra o sacrifício humano. Em Lv 18.21, e em Dt 18.10 o sacrifício humano é expressamente proibido. Tais vetos não teriam razão de ser se o contexto não criasse uma ocasião a esse tipo de oposição. É nesse contexto que o sacrifício de Isaque ganha seu total sentido.

    Como quero argumentar aqui, a história do sacrifício de Isaque serve a dois propósitos distintos: 1) salientar o lugar de Deus para a fé; 2) e destruir a mentalidade pagã do oriente antigo a respeito do sacrifício humano. O primeiro propósito ilustra a obediência de Abraão, de tal maneira que Isaque, seu filho da velhice, aquele que foi prometido por Deus, é requisitado exigindo que Abraão coloque a vontade divina acima do filho do seu amor. O segundo propósito se realiza quando providenciando um cordeiro, Deus extingue refuta qualquer necessidade de sacrifício humano, excluindo-o permanentemente do culto de Israel. Em um caso e em outro, o cordeiro substituto, providenciado por Deus, é sacrificado vicariamente cumprindo os propósitos divinos, realizando um bem em proveito humano. O cordeiro substituto surge aqui como a imagem de Cristo, o qual realiza em si mesmo, na preservação do homem, o resgate que nos concede a paz.

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