domingo, 6 de fevereiro de 2022

O Justo do Senhor

  A história da justificação de Abraão em Gn 15.6 foi colhida por Paulo como a história paradigmática, ou modelar da justificação pela fé sem a concorrência das obras da lei. O uso que Paulo faz de Gn 15.6 está em Rm 4 e em Gl 3.6-22. Compreender o uso que Paulo faz dessa passagem de Gênesis é fundamental para a compreensão cristã a respeito da justificação. Os texto hebraico para se referir ao ato de Abraão crer em Deus é וְהֶאֱמִ֖ן בַּֽיהוָ֑ה (vehe'emin bayhwāh) ou: “e deu seu amém ao Senhor”; e o ato da imputação da justiça é צְדָקָֽה לֹּ֖ו וַיַּחְשְׁבֶ֥הָ (vayyahexevehā lô tsedākā), ou algo como: e considerou (o ato de fé de Abraão) para a justiça. Na LXX o termo para considerar ou estimar é ελογισθη αυτω εις δικαιοσυνην (elogisthē autō eis dikaiosynēn), algo como computado, considerado ou contabilizado como justiça. Tanto o termo וַיַּחְשְׁבֶ֥הָ como o termo ελογισθη comportam a noção de considerar, estimar e mesmo reputar, e foi a fé o meio pela qual Abraão alcançou a graça de ser tido como justo, não por obras ou pela lei.

É importante nos reportarmos às palavras de Paulo em Rm 7 e 8.1-11. Segundo Paulo a lei foi tornada impotente (αδυνατος) em virtude carne (σαρξ), pois nos membros do homem caído há uma outra lei (ετερον νομος) que guerreia contra a lei de Deus (νομω του θεου) com a qual o homem interior concorda. Assim, é impossível que a lei de Deus se estabeleça como o meio de salvação porque a natureza humana que nos compõe é corrupta. Assim, independentemente da lei somos em Cristo justificados pela fé, pois Deus enviou seu Filho em carne condenou o pecado na carne santa do seu Filho, de modo que o pecado (αμαρτια) perdeu seu poder para nós que andamos segundo o Espírito (περιπατουσιν κατα πνευμα). Mas atenção, o homem que anda segundo o Espírito é alguém cujo homem exterior pode se corromper, mesmo que o exterior ainda se renove dia a dia (2Co 4.16); também o andar no Espírito não parece ser a libertação das defecções em sentido absoluto, pois é imperativo continuar a mortificação constante dos membros que estão sobre a terra (Cl 3.5ss).

Ao longo da história da igreja a compreensão a respeito da justificação sempre foi alvo de disputa. Mas o que está claro é que a nossa justificação vem de Deus pela fé (Gl 5.5), e também que na justificação ainda há pontos de defecção com os quais devemos lutar; e sendo amparados pelo poder do Espírito, por sermos considerados no indicativo como estando em Cristo, se torna imperativa a luta contra o pecado que habita em nós ao modo de defecção da natureza, ou da fraqueza da carne. Continua para os justos a tarefa de se humilhar debaixo da potente mão de Deus (1Pe 5.6), lamentar as misérias e chorar (Tg 4.9), e andar pelo Espírito na fé que atua pelo amor (πιστις δι αγαπης ενεργουμενη, cf. Gl 5.5,6), mesmo sabendo que se atuamos bem, como Abraão, temos do que nos gloriar, mas não diante de Deus, já que dele tudo provém, até mesmo a nossa justificação que nada mais é do que a justiça de Cristo em nós que nos dá a vida (Rm 5.12-21).

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