sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

São o Amor e a Justiça Divinas Um Único Atributo? Afirmamos que Sim, mas Fazemos a Devida Distinção

    Uma grande questão se levanta quando nos pomos a discorrer sobre os atributos divinos. E ultimamente tem se levantado a afirmação de que não existe algo que possamos chamar de distinção entre o amor e a justiça divinas, isso porque Deus é simples, não dotado de composição; assim sendo qualquer distinção que possa se estabelecer entre os atributos divinos, como justiça e amor, desembocaria na conclusão de que Deus é composto, o que acabaria por destruir o conceito de Deus. Notem bem: é bem verdade que Deus é simples, e isso afirma a escritura quando diz que Deus não possui variação ou sombra de mudança (Tg 1.17), e que impor qualquer composição em Deus seria coloca-lo nos limites da criatura da qual Deus é radicalmente distinto. Também é verdade que o nome atributo só pode ser aplicado metafórica e impropriamente a Deus, pois são os atributos não qualidades dadas a Deus pelas quais possamos notar um acréscimo em seu Ser. Assim sendo, em um sentido bem próprio é verdade que Deus não possui atributos, mas Deus é seus atributos; Deus não possui justiça, mas Deus é a Sua justiça; também Deus não possui amor, mas ele é amor.

    Foi da lavra dos nominalistas a noção de que as distinções entre os atributos divinos só são distinções que possuem realidade em nossa mente. Assim o conceito de atributos não é fruto de uma predicação real, mas meras logias, palavras pela qual poderíamos organizar o conceito de Deus para nós. Fazendo assim os nominalistas resguardavam o conceito de simplicidade divina, mas como consequência tal noção poderia confundir os diversos fins estabelecidos por Deus para seus atos. Como afirmou de forma assertiva Berkhof, por esse caminho estamos indo em a passos largos em direção ao panteísmo1, como procurarei esclarecer mais tarde.

    Mas o que são os atributos divinos? Turretini define os atributos como: Os atributos divinos são propriedades essenciais pelas quais Deus se faz conhecido a nós, que somos fracos, e aquelas pelas quais ele se distingue das criaturas; ou são as que lhe são atribuídas em consonância com a medida de nossa concepção, a fim de explicar sua natureza2 e: indicam perfeições essenciais à natureza divina concebidas por nós como propriedades3. E como dissemos anteriormente, tais propriedades não são atribuições em sentido próprio, mas sim em sentido impróprio, sendo atribuídos a Deus metaforicamente, pois eles não podem ser distinguidos intrinsecamente da essência divina que é una e perfeitíssima. Contudo, mesmo que tais atributos não possam ser distintos realmente da essência divina, contudo nem por isso eles não podem ser virtual e eminentemente distintos tanto da essência divina como entre si, i. e., extrinsecamente quanto à terminação, ou seja, quanto aos distintos fins e efeitos exteriores propostos na essência divina.

    Partimos da noção de que os atributos não podem ser realmente distintos da essência divina. A razão disso é que tal essência, por ser imutável, é absolutamente simples, repugnando a ela qualquer forma de composição. Entendamos que a unicidade por composição só pode vir por agregação, agregação essa que não pode ter a sua razão de ser, como causa, o próprio sujeito composto. Ora, isso destruiria a independência de Deus, pois a agregação supõe uma perfeição anterior pela qual a unidade do composto pode vir a ser. Também implicaria em impor a Deus potência passiva - raiz da mutabilidade - pois na composição um ente passa de um estado a outro. Ora repugna ao ser simplicíssimo tanto a mutabilidade quanto a composição. Nesse sentido repugna qualquer distinção real intrínseca ao ser simplicíssimo. Não obstante a isso não repugna ao ser simplicíssimo a diversidade quanto à terminação, i.e., quanto à diversidade extrínseca de fins propostos pela essência divina pelas quais é constituída a base para as diversas concepções formais em relação aos atos divinos formuladas por nós. Ora, é justamente por isso que distinguimos em sentido próprio um ato de juízo realizado no ser ao qual o juízo é destinado do ato de misericórdia para quem tal ato é direcionado, pois mesmo que em sentido último tais atos visem unicamente a glória divina, elas não visam a mesma glória da mesma forma, ou segundo os mesmos efeitos.

    A partir desse ponto podemos colocar a questão de forma mais clara: a distinção formal (i. e, intelectual) entre os atos de misericórdia e juízo não é mera distinção entre os nomina, como afirmaram os nominalistas, pois a constituição formal da misericórdia e do juízo são realmente distintas qua efeitos, pois tais efeitos dessas operações divinas são diversos nos termos passivos aos quais tais atos divinos se remetem - aqui mais precisamente os homens que são alvos ou do juízo ou da misericórdia. Ninguém pode dizer que o ato do juízo é idêntico ao ato de misericórdia, pois os fins propostos em tais atos não são o mesmo, embora ambos os atos Deus vise igualmente a Sua glória. Aqui temos a base pela qual a teologia não cai na irracionalidade, pois ao percebermos a diversidade de fins podemos apreender a diversidade de operações em Deus: criar não é o mesmo que ajuizar; castigar não é o mesmo que perdoar; e salvar não é o mesmo que punir, pois mesmo que Deus salve um punindo outro, aquele a quem Deus salva e aquele a quem Deus pune não recebem necessariamente a mesma operação em sentido unívoco, mesmo que ambas as operações procedam da essência una.

    É nesse sentido que entendemos que a distinção de atributos divinos é algo proposto para a nossa compreensão a respeito daquilo que Deus mostra de Si na criação. Confundir a juízo e misericórdia é por a obra divina sob o sinal da irracionalidade, coisa que não convém às perfeições de Deus. É aqui que entendemos o que Berkhof queria dizer quando disse que a eleminação de qualquer forma de distinção em Deus conduziria ao panteísmo (ou ao panteísmo gnosiológico), pois mesmo que não haja uma distinção real entre essência e atributos divinos, e nem mesmo uma distinção real entre os atributos entre si, contudo a eliminação da distinção lógica entre eles colocaria os efeitos da operação da essência divina sob o sinal da indiferenciação. Assim, criar não seria algo distinto de condenar, e nem mesmo os efeitos da criação criados por Deus difeririam das operações divinas, mesmo que tudo promane de Deus.

    É bem verdade que os atributos divinos podem ser predicados uns dos outros quando visualizados pelo ângulo da unidade; assim dizemos que o amor pode ser predicado da justiça, assim como a intelectualidade pode ser predicada da volutariedade em Deus, pois todas essas coisas, na essência divina, são uma só. Mas isso não é verdade no que diz respeito à distinção formal, i. e. intelectual desses atributos, pois existe uma diversidade tanto em relação à nossa concepção, quanto com relação aos fins e objetos desses atributos divinos. Portanto os atributos estão sob o sinal da unidade quanto ao princípio, i.e., quanto à unidade da essência; contudo são diversos quanto aos objetos aos quais se dirigem e quanto aos diversos efeitos produzidos no ser; são um uno enquanto considerados subjetivamente, absoluta e intrinsecamente em Deus; mas são diversos quando considerados objetivamente, relativa e extrinsecamente quanto aos fins e efeitos no ser.

    A diversidade de efeitos sugere um diversidade de fins, mas não uma diversidade intrínseca em Deus, mas sim uma diversidade formal, i. e, intelectual, em nós quanto aos atributos, pois é assim que alcançamos alguma noção de Deus. Nesse sentido os atributos divinos não possuem uma distinção real, mas meramente lógica, pois Deus é uno e simples sem qualquer espécie de composição.         

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[1] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã. São Paulo-SP, 1ª ed., 1990. p. 44, 45

[2] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética. Ed. Cultura Cristã. São Paulo-SP, 1ª ed., 2011, p. 257

[3] Idem.

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