segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Entrego Meus Poços pela Paz

    O Antigo Testamento está pleno de evangelho. Quando se afirma isso partimos da distinção que ficou famosa – e até determinante – na teologia luterana. A distinção entre lei e evangelho é aquela que parte da teologia paulina (i.e. do apóstolo Paulo) em que a justificação se dá, no evangelho, pela fé em Cristo de forma independente das obras da lei. Mas também se remete às doutrinas da misericórdia que devem ser postas em práticas por todos os cristãos. Nesse sentido, o sermão da montanha em Mt 5-7 mostram uma forma de conduta de Cristo pela qual a justiça da lei – que é santa e justa – é sobrepujada pelos interesses do perdão e da misericórdia. Assim somos ensinados a ir para além da mera Lei do Talião, ou seja, a lei que instrui sobre a natureza da justiça nos famosos dizeres olho por olho e dente por dente (Lv 24.20). Essa lei não é um incentivo à vingança, mas um regramento que delimita a punição retributiva ao tamanho do agravo sofrido, não indo além para além dele.

    Mas é possível que se vá para além da justiça retributiva, e já no Antigo Testamento, especificamente em Gn 26, há uma interessante história que ilustra como esse espírito evangélico já era constitutivo da moral cultivada por Deus nos corações dos homens. Gn 26.15-25 nos fala da história das peregrinações de Isaque nas terras de Gerar, e como prosperou imensamente nos campos de Abimeleque, por inveja lhe entulharam os poços que haviam sido cavados desde os tempos de Abraão. Após isso ainda cavou mais três poços, dois dos quais lhes foram tomados em reivindicação pelos donos das terras, mas na terceira vez ninguém contendeu com ele e seus pastores pela sua posse, e assim chamou aquele poço de Reobote (רְחֹבֹ֔ות = rehōbôt), nome que significa amplo, campo aberto, espaçoso, extenso, largueza, denotando possivelmente a capacidade de Isaque crescer em paz.

    Note que antes de findar a campanha de entulhamento dos poços, Isaque não buscou reivindicar qualquer direito, e mesmo sendo poderoso, mais até do que Abimeleque (cf. vs. 16), não usou do seu poder para entrar em guerra em nome da justiça, antes cedeu espaço – e até mesmo direito - para aqueles que o atacavam. É impossível com essa história não vir à mente os vs. de Mt 5.39,40, onde diz: Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa. Esses versículos nos ensinam a abrir mão da reivindicação do que é nosso em nome de um benefício maior, a sacrificar pela paz, em última instância. Isso não significa recompensar o mal, mas recusar cai na provocação, pois o mal tem vingador, se já desprezo da misericórdia, como diz Paulo: Amados não se vinguem, mas dêem lugar à ira, como está escrito: Minha é a vingança e eu retribuirei (Rm 12.19).


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