quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Comentário em Isaías 3.1-5: (וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ) O caos e a inversão: O juízo sobre Judá e Jerusalém (1ª parte)

Texto Hebraico de Isaías 3.1-5:

1 כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות מֵסִ֤יר מִירוּשָׁלִַ֨ם֙ וּמִ֣יהוּדָ֔ה מַשְׁעֵ֖ן וּמַשְׁעֵנָ֑ה כֹּל מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם וְכֹ֖ל מִשְׁעַן־מָֽיִם׃
2 גִּבֹּ֖ור וְאִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה שׁוֹפֵ֥ט וְנָבִ֖יא וְקֹסֵ֥ם וְזָקֵֽן׃
3 שַׂר־חֲמִשִּׁ֖ים וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים וְיוֹעֵ֛ץ וַחֲכַ֥ם חֲרָשִׁ֖ים וּנְבֹ֥ון לָֽחַשׁ׃
4 וְנָתַתִּ֥י נְעָרִ֖ים שָׂרֵיהֶ֑ם וְתַעֲלוּלִ֖ים יִמְשְׁלוּ־בָֽם׃
5 וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד׃

Tradução e Comentário:

1, 2, 3)

כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות מֵסִ֤יר מִירוּשָׁלִַ֨ם֙ וּמִ֣יהוּדָ֔ה מַשְׁעֵ֖ן וּמַשְׁעֵנָ֑ה כֹּל מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם וְכֹ֖ל מִשְׁעַן־מָֽיִם׃
גִּבֹּ֖ור וְאִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה שׁוֹפֵ֥ט וְנָבִ֖יא וְקֹסֵ֥ם וְזָקֵֽן׃
שַׂר־חֲמִשִּׁ֖ים וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים וְיוֹעֵ֛ץ וַחֲכַ֥ם חֲרָשִׁ֖ים וּנְבֹ֥ון לָֽחַשׁ׃

    Porque, eis que, ha'Adon, o Senhor dos Exércitos, remove totalmente o sustento, o sustento de pão (alimento), o sustento de água, o homem valoroso de guerra, o juiz, o profeta, o adivinho, o ancião, o chefe de cinquenta, o respeitável, o conselheiro, o mago e o hábil encantador.

    O que veremos à frente, dos vs. 1-15, é um quadro distópico a respeito do reino do sul (Judá e Jerusalém). Um quadro completamente invertido de Is 2.1-5, o qual se mantém fixo como um quadro paradigmático, como uma tela de fundo que lança luz sobre a fealdade disforme da realidade pragmática de Judá e Jerusalém.

    Isaías continua a sua profecia e profere um nome para Deus que, segundo a tese deste comentário, lança luz sobre toda esta porção do texto que vai dos vs.1-15. O nome em questão é הָאָדֹ֜ון (ha'adon), sendo o prefixo הָ (ha) apenas um indicativo de אָדֹ֜ון ('adon). O nome אָדֹ֜ון nos remete a אֲדֹנַי ('adonay) escrito apenas com hôlen, ou אֲדוֺנַי ('adonay) escrito com hôlen-vav, sendo estes grafias que representam um dos nomes divinos listados no Antigo Testamento. O nome divino é derivado de דּוּן (ddun) e דִּין (ddyn) e significa basicamente dominar, governar, pleitear, defender um causa e mesmo julgar ou juízo. Assim o significado básico de אָדֹ֜ון nos leva à consideração de que o Senhor dos Exércitos (יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות), como governante todo poderoso, e como juiz plenipotente, entra em um tipo de relação com seu povo com base na justiça e, nesse sentido, em justiça vindicativa. Isso é claro se compreendermos apresentação por parte de Isaías de Deus como אָדֹ֜ון; e se estabelecermos uma ligação entre esse nome de Deus ao vs. 13, onde se diz que Yahweh (יְהוָ֑ה) se dispõe (נִצָּ֥ב) a pleitear em juízo (לָרִ֖יב) e a sentenciar (לָדִ֥ין) os povos (עַמִּֽים), entendemos a razão pela qual Isaías manifesta esse nome de Deus. Especificamente em sentenciar (לָדִ֥ין) tomamos o לָ como preposição em relação ao verbo דִ֥ין o qual deriva de דִּין (ddyn) e, como já vimos, significa sentença, juízo etc., sendo raiz de אָדֹ֜ון. Assim ha'adon (הָאָדֹ֜ון) sentencia (לָדִ֥ין) os povos (עַמִּֽים) e é nessa sentença que vemos o significado de todo esse bloco que vai dos vs. 1-15.

    O profeta proclama a sentença do Senhor: tirar todo sustento. Desde o sustento de alimento (מִשְׁעַן־לֶ֔חֶם) ao sustento de água (מִשְׁעַן־מָֽיִם) seriam tirados, o que redundaria na miséria física do povo. A ideia de miséria é justificável porque a partícula כל é apresentada duas vezes para se referir a toda água e a todo alimento. No entanto, não seriam apenas os elementos básicos para a sustentação da vida aqueles retirados do povo, mas também aqueles elementos que garantem certa sustentação da ordem. Então o homem valoroso de guerra, o juiz, o profeta, o adivinho, o ancião, o chefe de cinquenta, o respeitável, o conselheiro, o mago e o hábil encantador, todas essas coisas o Senhor remove (הִנֵּ֨ה). E pelo tipo de pessoas que constituem a ordem política de Judá e Jerusalém podemos ver que essa a liderança estava tocada pelo apodrecimento. O profeta divide espaço com o adivinho (קסם); o ancião, o homem respeitável e o conselheiro também dividem espaço indevidamente com os feiticeiro (חֲרָשִׁ֖ים) e o mago perito (נְבֹ֥ון לָֽחַשׁ). Somados a esses estão o valente (גִּבֹּ֖ור) e o homem de guerra (אִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה). A mistura dá conta do desastre, da catástrofe física e espiritual de Judá e Jerusalém: podemos ver que o profeta é tocado pela cegueira, quando o vemos associado com o adivinho (קֹסֵ֥ם). No Antigo Testamento Interlinear vol. 3 da SBB temos a tradução de קֹסֵ֥ם por agoureiro, e entendemos que isso é uma tradução razoável onde o gênero é tomado pela espécie, já que קסם é uma palavra que podemos traduzir por adivinho em um sentido geral e mais especificamente como a arte do falso profeta (יקסם).

    Quando conjugamos a existência de um profeta com um falso profeta e isso relacionado ao homem respeitável (וּנְשׂ֣וּא פָנִ֑ים), ao ancião (זָקֵֽן) e ao conselheiro (יוֹעֵ֛ץ), vemos que a elite de Israel, aquela que tem a função de governar, e de sentenciar, estava totalmente degrada. Para um homem respeitável e para um ancião condescenderem com as artes de um falso profeta é preciso que a degeneração espiritual tenha avançado muito longe. E não podemos desconsiderar o quanto um adivinho pode exercer uma influência destrutiva tanto em relação ao povo quanto àqueles que eles se aproximam. Assim, com os representantes que julgamos ser os mais capazes prejudicados desse modo, não estranha que a impiedade e a insanidade tenham exercido domínio sobre Judá. Também a presença do mago (נְבֹ֥ון) e dos feiticeiros (חֲרָשִׁ֖ים) demonstram como a alta cúpula de Judá estava tocada pelo desejo de poder a qualquer custo, assim como afetada pela superstição e insensibilidade à maldade. Em todo casos, a degradação do juízo era evidente. E se assim era, qual seria a qualidade de governo dos príncipes de Israel? Qual seria a qualidade das suas sentenças? Não seriam as coisas torcidas, gerando uma onda de opressão? Também, com esses cabeças em posse do valente (גִּבֹּ֖ור) e do homem guerreiro (אִ֣ישׁ מִלְחָמָ֑ה), podemos ver o quadro geral como a mistura do juízo perverso unido ao poder militar. Pois todo poder é, em geral, neutro, e possui certa bondade física por simplesmente existir. Mas do poder aliado à loucura só podemos esperar insanidade, injustiça e violência.    

4,5)

וְנָתַתִּ֥י נְעָרִ֖ים שָׂרֵיהֶ֑ם וְתַעֲלוּלִ֖ים יִמְשְׁלוּ־בָֽם׃
וְנִגַּ֣שׂ הָעָ֔ם אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד׃

    E darei jovens como chefes e os maus-tratos os governarão. Entre o povo, oprimem uns aos outros, cada um, ao seu próximo; e se atreverá o jovem contra o velho e o desprezível contra aquele que é honrado.

    O juízo de Yahweh, assim, daria a Judá a inversão que eles estavam procurando. E vemos a inversão de um reto juízo abstratamente considerado ganhando concreção de forma assustadoramente real: jovens dominam opressivamente. O desmantelamento da ordem da realidade ganha concreção e os termos são colocados de forma que possamos entender que o desastre é derivado da forma como as coisas se encontravam. O problema do governo do jovem não vem da malícia propriamente dita, ainda que ela possa estar presente. A questão está justamente em que a pouca experiência desabilita o jovens ao governo, ao exercício de um tipo de poder que só pode ser exercido positivamente na posse de certa experiência. Estamos, portanto, diante da desrazão dos que governarão (יִמְשְׁלוּ־בָֽם) caoticamente, e a palavra תַעֲלוּלִ֖ים (ta'alulim) só confirma isso. תַעֲלוּלִ֖ים vem de עלל e significa (somando suas declinações), entre outras coisas, tratar mal, repetir uma ação, agir como criança, abusar etc. Embora as traduções tragam geralmente o sentido da palavra como se referindo a crianças, o contexto nos sugere um emprego tanto polissêmico como negativo dessa palavra. Podemos, por isso, entender aqui um governo desastroso de imperitos, ou mesmo o desastre de um governo de jovens e inexperientes, ou mesmo um governo de irresponsáveis que traz maus-tratos. E se em Deuteronômio 1,13[1] temos o paradigma para a escolha daqueles postos como cabeça (רֹאשׁ) do povo, possuindo atributos como sábios (חֲכָמִ֧ים), inteligentes (נְבֹנִ֛ים) e experimentados (ידֻעִ֖ים), um governo sem sábios e experimentados (חָכָם) é tudo aquilo que é o inverso de um governo praticado segundo a sabedoria de Yahweh.

    O quadro distópico que desenhou a futura inversão no campo vertical do exercício do poder agora se delineia também de forma terrível no campo horizontal da relação entre as pessoas. Aqui o vs. 5 diz que no que diz respeito ao povo (עַם), ou à comunidade, oprimirá (נִגַּ֣שׂ) cada um contra o outro (אִ֥ישׁ בְּאִ֖ישׁ), e cada um contra o próximo (וְאִ֣ישׁ בְּרֵעֵ֑הוּ). Essa realidade profetizada por Isaías está em flagrante descompasso com o preceito de Lv 19.18, que diz: לֹֽא־תִקֹּ֤ם וְלֹֽא־תִטֹּר֙ אֶת־בְּנֵ֣י עַמֶּ֔ךָ וְאָֽהַבְתָּ֥ לְרֵעֲךָ֖ כָּמֹ֑וךָ אֲנִ֖י יְהוָֽה׃, ou: Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo com a ti mesmo. Eu sou o Senhor!

    Aqui se torna óbvia a flagrante transgressão contra dois preceitos do Senhor: 1) A transgressão contra o preceito de escolher homens sábios, inteligentes e experimentados como cabeças do povo (רָאשֵׁ֣י הָעָ֔ם); 2) A transgressão contra o preceito de amar o próximo como a ti mesmo (אָֽהַבְתָּ֥ לְרֵעֲךָ֖ כָּמֹ֑וךָ). Portanto, temos uma transgressão em dimensão vertical, que diz respeito à má qualidade da autoridade exercida sobre o povo, e a transgressão em dimensão horizontal, no ressentimento cultivado e no ódio deliberado contra seu semelhante.

    Somada a essa inversão se soma outra, inversão que torna a realidade caótica vislumbrada ainda mais deprimente: 1) e se atreverá o jovem contra o velho (יִרְהֲב֗וּ הַנַּ֨עַר֙ בַּזָּקֵ֔ן); 2) e o desprezível contra aquele que é honrado (וְהַנִּקְלֶ֖ה בַּנִּכְבָּֽד). Aqui a visão prudencial e a consciência de certa ordem de coisas na profecia de Isaías não poderia ser mais assertiva. Há certo gênio nessa profecia que nos indica uma visão de coisas que não pode ser desprezada, pois é certo que o atrevimento do jovem contra o velho só pode indicar desordem. Pois em Lv 19.32 há o preceito de se levantar diante das cãs e de reverenciar a face do velho. Portanto, o se atrever (יָרָה), ou se lançar diante da face do velho é também uma inversão da ordem, ainda mais isso sendo feito por parte de um jovem (נַעַר), o qual é inexperiente por definição e, por tanto, dificilmente capaz de formular um juízo para lançar acusações ou ofensas diante de um ancião. Da mesma forma é o cúmulo da audácia e mendacidade o vil (קָלָל), alguém leve e sem peso algum, um vilão em sentido estrito, se lançar (יָרָה) contra um nobre (נִּכְבָּֽד), ou melhor, contra aquele que tem peso, glória e honra.

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[1] Original: הָב֣וּ לָכֶם אֲנָשִׁ֨ים חֲכָמִ֧ים וּנְבֹנִ֛ים וִידֻעִ֖ים לְשִׁבְטֵיכֶ֑ם וַאֲשִׂימֵ֖ם בְּרָאשֵׁיכֶֽם׃






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