quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O Ridículo, o Brutal e o Desconhecimento de Si

    Erros semelhantes, nascidos por uma falsa percepção de si, não possuem o mesmo peso quando praticados por pessoas diferentes, e em especial quando essa falsa percepção habita indivíduos inócuos ou indivíduos poderosos. Um discernimento interessante a respeito dessa matéria está na obra Filebo de Platão:

"Faz a divisão, por tanto, com base no seguinte: todos os que combinarem essa falsa concepção com debilidade e se mostrarem incapazes de vingança quando forem objeto de riso, poderás classificar de ridículos, ao passo que aqueles que forem fortes e capazes de se vingarem, classificarás mais corretamente como poderosos é odiosa e desonrosa, uma vez que a ignorância no indivíduo poderoso é odiosa e desonrosa, na medida em que autêntica ou dissimulada é danosa aos seus semelhantes; entretanto, a ignorância no débil situa-se na esfera do naturalmente ridículo."1
    Essa digressão que Platão colocada na boca de Sócrates está relacionada à questão da consciência de si, pois mais acima ele faz alusão ao famoso oráculo gravado na entrada do templo de Delfos, o qual aconselhava: "Conhece a ti mesmo". Nesse ponto, seguindo o propósito geral da obra, que é tratar sobre a natureza do prazer (ηδονη = ēdonē), Sócrates afirma que o vício é dor e que entre os vícios estão a ignorância e a estupidez, e que essas, sendo resultado do desconhecimento de si, levam as pessoas a certa desmedida na consideração de si mesmas, viciando seus atos. Essa desmedida na consideração de si, geralmente, leva as pessoas a três enganos, ou seja: à consideração de que são mais ricas do que são, mais belas do que são ou mais sábias do que são.
    Um dos pontos altos dessa reflexão está relacionado principalmente ao terceiro tipo de engano, que é aquele comum às pessoas que se acham mais sábias do que são. Se voltarmos os nossos olhos para outra obra platônica, a Apologia de Sócrates, veremos que essa desmedida na consideração de si por parte dos poderosos foi o que matou o velho mestre de Platão, pois Sócrates, movido pela profecia do oráculo de Delfos, tinha na filosofia a missão divina de inquirir a real consistência da sabedoria daqueles que se diziam sábios. E na medida em que avançava em sua missão, ao descobrir que os que se diziam sábios na verdade nada eram, começou a angaria o ódio da classe poderosa de Atenas - o que também diz respeito aos sofistas que treinavam candidatos à política ateniense e, portanto, estavam envolvidos na vida da alta classe da cidade grega.
    A questão, que Platão conhecia bem, era que a ignorância e a estupidez, sendo ridículas e inócuas entre os fracos - ao pensarem ser mais belos, mais ricos, e mais sábios do que eram -, eram perigosas quando habitavam a mente daqueles que tinham mais poder de ação, pois mais capazes de levar adiante o ódio nascido da fratura de sua vaidade moral, quando sua contradição e ignorância eram expostas à luz dos fatos. Também toda essa reflexão acima subsidia a nossa compreensão sobre o emblemático dito de Platão onde ele afirmou que os povos não seriam felizes a não ser que os filósofos fossem reis e os reis fossem filósofos, pois para Platão quando a mente de um governante ou poderoso estiver bem disposta com a realidade será posto um fim à brutalidade insana e à odiosa grosseria - prejudicial aos semelhantes -, coisas às quais só a estupidez dos grandes é capaz.

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