segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Comentário em Tiago 2.14-26: (ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν) A fé impotente para a salvação

 Texto Grego de Tiago 2.14-26:

14 Τί τὸ ὄφελος, ἀδελφοί µου, ἐὰν πίστιν λέγῃ τις ἔχειν, ἔργα δὲ µὴ ἔχῃ; µὴ δύναται ἡ πίστις σῶσαι αὐτόν; 15 ἐὰν ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ γυµνοὶ ὑπάρχωσιν καὶ λειπόµενοι τῆς ἐφηµέρου τροφῆς, 16 εἴπῃ δέ τις αὐτοῖς ἐξ ὑµῶν, Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ, θερµαίνεσθε καὶ χορτάζεσθε, µὴ δῶτε δὲ αὐτοῖς τὰ ἐπιτήδεια τοῦ σώµατος, τί τὸ ὄφελος; 17 οὕτως καὶ ἡ πίστις, ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα, νεκρά ἐστιν καθí ἑαυτήν. 18 Ἀλλí ἐρεῖ τις, Σὺ πίστιν ἔχεις κἀγὼ ἔργα ἔχω. δεῖξόν µοι τὴν πίστιν σου χωρὶς τῶν ἔργων, κἀγώ σοι δείξω ἐκ τῶν ἔργων µου τὴν πίστιν. 19 σὺ πιστεύεις ὅτι εἷς θεός ἐστιν; καλῶς ποιεῖς· καὶ τὰ δαιµόνια πιστεύουσιν καὶ φρίσσουσιν. 20 θέλεις δὲ γνῶναι, ὦ ἄνθρωπε κενέ, ὅτι ἡ πίστις χωρὶς τῶν ἔργων ἀργή ἐστιν; 21 Ἀβραὰµ ὁ πατὴρ ἡµῶν οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ἀνενέγκας Ἰσαὰκ τὸν υἱὸν αὐτοῦ ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον; 22 βλέπεις ὅτι ἡ πίστις συνήργει τοῖς ἔργοις αὐτοῦ καὶ ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη, 23 καὶ ἐπληρώθη ἡ γραφὴ ἡ λέγουσα, Ἐπίστευσεν δὲ Ἀβραὰµ τῷ θεῷ, καὶ ἐλογίσθη αὐτῷ εἰς δικαιοσύνην, καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη. 24 ὁρᾶτε ὅτι ἐξ ἔργων δικαιοῦται ἄνθρωπος καὶ οὐκ ἐκ πίστεως µόνον. 25 ὁµοίως δὲ καὶ Ῥαὰβ ἡ πόρνη οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ὑποδεξαµένη τοὺς ἀγγέλους καὶ ἑτέρᾳ ὁδῷ ἐκβαλοῦσα; 26 ὥσπερ γὰρ τὸ σῶµα χωρὶς πνεύµατος νεκρόν ἐστιν, οὕτως καὶ ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν.

Tradução e Comentário:

14 Τί τὸ ὄφελος, ἀδελφοί µου, ἐὰν πίστιν λέγῃ τις ἔχειν, ἔργα δὲ µὴ ἔχῃ; µὴ δύναται ἡ πίστις σῶσαι αὐτόν; - Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras? Será que a fé é potente para salva-lo?

    O mensagem de Tiago, o presbítero, verte sabedoria prática, sabedoria com todo sabor experimental como nos mostra o Antigo Testamento. Sabedoria no hebraico é חָכְמָה (hacmâh), e significa, grosso modo, habilidade, sagacidade, experiência. Se levarmos em consideração livros de sabedoria como o קֹהֶ֣לֶת (Qoéleth = Eclesiastes), vemos que esse tipo de sabedoria tem uma poderosa base empírica, nascendo do acúmulo de experiência, pois parte da observação reiterada de fatos circundantes: a brevidade da vida, a observação das coisas que ao longo do tempo importam, os efeitos positivos de se guardar os preceitos de Deus, a loucura do vida baseada na pratica da maldade, a falta de sabedoria na avareza, a loucura de se fazer do trabalho sem o gozo dos seus frutos uma forma de vida etc. E a epístola de Tiago sendo um livro de sabedoria, tem também forte fundamentação empírica e, por assim dizer, um gosto pelo concreto.

   O divino Tiago começa indagando a consciência dos ouvintes: Que proveito há meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras? Há a interposição de um questionamento metódico. Também há um pressuposto que afirma a interconexão necessária entre a (πίστιν) e as obras (ἔργα), sendo a relação entre e obras proporcional à relação entre causa e efeito. Assim, se a relação entre e obras é proporcional à relação entre causa e efeito, a afirmação da presença da na ausência de obras padece de um lapso grave.

    Segue-se a arguição: Será que a fé tem potência para salva-lo? A interrogação em questão começa com µὴ () e pressupõe uma certa insinuação também metódica que tem o fim de provocar certa reflexão. Portanto: Não tem a fé potência (δύναται) ...? Aqui δύναται se refere à potência que algo possui para causar certo efeito. A arguição de Tiago visa lançar luz sobre a impotência de uma fé sem obras. Assim, tal (πίστις) é impotente (αδυνατος) para levar a efeito a salvação (σῶσαι = salvar).

15, 16, 17 ἐὰν ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ γυµνοὶ ὑπάρχωσιν καὶ λειπόµενοι τῆς ἐφηµέρου τροφῆς, εἴπῃ δέ τις αὐτοῖς ἐξ ὑµῶν, Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ, θερµαίνεσθε καὶ χορτάζεσθε, µὴ δῶτε δὲ αὐτοῖς τὰ ἐπιτήδεια τοῦ σώµατος, τί τὸ ὄφελος; οὕτως καὶ ἡ πίστις, ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα, νεκρά ἐστιν καθí ἑαυτήν. - Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e necessitados de alimento diário, e alguém de vós disser a eles: Ide em paz, aqueçam-se e fartem-se, mas não der a eles as coisas necessárias ao corpo, que proveito isso terá? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma.

    No versículo anterior, que serve como um caput daquilo que será detalhado, vimos uma pergunta que também apresenta um quadro esquemático. Qual o proveito da fé sem obras? Seguindo o modo empírico da sabedoria hebraica, São Tiago serve-se agora de uma situação hipotética para novamente provocar uma reflexão dos ouvintes. A hipótese levantada no versículo inclui elementos interessantes como a necessidade de vestes e comida por parte de um irmão ou irmã (ἀδελφὸς ἢ ἀδελφὴ), e a indiferença grosseira por parte de irmãos um pouco mais abastados. Assim, a indiferença é exposta pela situação terrível dos irmãos e pelo simples aceno indiferente: Ide em paz (Ὑπάγετε ἐν εἰρήνῃ). Como haverá paz na nudez e na fome? Trata-se de manifestação de uma insensibilidade cruel que não tem capacidade alguma de ocupar um mesmo espaço com aquela fé que salva, e portanto, tal , como dom de Deus, não pode ser causa de um efeito semelhante à indiferença cruel com os conservos na fé. Cada árvore tem o seu correspondente fruto, logo: Pode semelhante fé salvar? Ou: Está o indiferente na posse da fé salvadora?

    Aqui fala o grosseiro apartado de toda sensibilidade ao irmão nu e faminto: Ide em paz, aqueçam-se e fartem-se. Mas ao lado dos votos a indiferença, a questão: mas não der a eles as coisas necessárias ao corpo. Aqui São Tiago faz nova arguição: que proveito isso terá? Assim não tem proveito (ὄφελος) afirmar tal fé, pois a fé (ἡ πίστις,), se não tiver obras (ἐὰν µὴ ἔχῃ ἔργα) está morta (νεκρά ἐστιν).

18, 19 - Ἀλλí ἐρεῖ τις, Σὺ πίστιν ἔχεις κἀγὼ ἔργα ἔχω. δεῖξόν µοι τὴν πίστιν σου χωρὶς τῶν ἔργων, κἀγώ σοι δείξω ἐκ τῶν ἔργων µου τὴν πίστιν. σὺ πιστεύεις ὅτι εἷς ἐστιν θεός; καλῶς ποιεῖς· καὶ τὰ δαιµόνια πιστεύουσιν καὶ φρίσσουσιν. - Mas dirá alguém: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra a mim a tua fé sem obras, e eu mostrarei a ti pelas obras a minha fé. Você crê que Deus é um? Fazem bem; também os demônios crêem e estremecem.

    O presbítero expõe agora algo que nos dá ocasião para comentar sobre um equívoco influente, ou seja, sobre a oposição entre e obras. Em um primeiro momento há uma oposição aparente, quando é exposto o partidário da fé solitária e aquele que diz manifestar suas obras (ἔργων). Mas se torna imperioso salientar a expressão: e eu mostrarei a ti de + as = das (ἐκ τῶν = ek tôn, também pelas) minhas obras (ἔργων µου) a fé (τὴν πίστιν). O expositor segue o método fenomenológico, ou seja, pela apresentação do efeito Tiago aqui quer deixar evidente a realidade causa. Tiago com isso não está fazendo oposição à fé, mas sim mostrando a sua presença e a realidade de sua operação através de seu efeito, ou seja, das obras.

    Há real posição aqui àquilo que chamamos de fé solitária. Muito disputada é a questão da relação entre a fé e as obras nesse texto, e muito imprecisas são, não raro, as considerações a respeito da suposta oposição entre a noção paulina de e a noção jacobita* de . Também polêmica é a questão relacionada ao sola fide, ou somente a fé, tal como postulou a Reforma quando afirmou que somente a fé é o meio da justificação - não confunda-se aqui a como meio e a como causa da justificação, pois resta óbvio que a Reforma não afirma a fé como causa, mas como meio da justificação, muito embora ela, a fé, seja causa das boas obras.

    A postulação paulina em textos como Rm 3.28 e 4.1-5, onde se afirma uma forma de justificação pela fé em Cristo independente das obras da lei, pode, por imperícia, ser jogada contra aquilo que Tiago expõe na sua argumentação. A princípio, podemos falar que tanto Tiago quanto Paulo observam a relação entre a fé e as obras por ângulos diferentes, pois vemos Paulo partindo da noção da justificação como um dom divino que foge do escopo da lei de Moisés, e Tiago analisando a questão por uma perspectiva fenomenológica, buscando as evidências pelas quais podemos afirmar a presença real da fé salvadora. Paulo tratando a questão da fé a partir de um ponto de vista mais teórico e Tiago por um ponto de vista mais empírico - o que, certamente, não impugna a ideia de que Paulo também analisa a questão por meio de considerações fenomenológicas, como quando, em Rm 7, fala sobre a presença do pecado que nos tornou impotentes para a perfeita justiça.

    O que é evidente, no entanto, é que Paulo não nega a verdade de uma fé operante, quando, por exemplo, em Gl 5.6, afirma a realidade de uma fé que opera pelo amor (πίστις διí ἀγάπης ἐνεργουµένη). Ora, a fé opera pelo amor quando realiza obras; assim, se é pela que os gentios são justificados, essa mesma fé justificadora tem certas notas distintivas, e uma delas é que ela opera pelo amor. Não se trata de uma fé inoperante, o que a opõe frontalmente com o tipo de fé solitária que Tiago aqui combate em sua epístola. Portanto, a fé que justifica independentemente das obras da lei não é compatível com a fé de quem vê seu irmão em apuros e desconsidera seu sofrimento, não oferecendo nada para o seu alívio.

     Assim Tiago vai mais fundo e faz uma arguição retórica, contestando um tipo de fé simplesmente contemplativa, ou teórica, afirmando que embora os demônios (δαιµόνια), que "criam" melhor do que os politeístas, afirmando existir um único Deus (εἷς ἐστιν θεός = um é Deus), isso nada era de proveito para eles. Uma fé solitária é comum até aos demônios. E distinguimos aqui a fé solitária como composta por duas notas distintivas: notitia e assensus. Então seguimos com as distinções: não é suficiente termos em nós a noção (notitia), ou a informação em nossa mente, da realidade de um Deus. Nem mesmo é suficiente dar o nosso assentimento (assensus) a essa noção. Pois é possível ter em nossa mente a informação da existência de Deus, aceitarmos Sua existência, mas negarmos a esse Deus tanto a confiança quanto a obediência, ou o amor. De fato, essa nada leva a efeito e é impotente (αδυνατος) para salvar (σῶσαι). Portanto de nada vale esse crer que nada leva a operar e a operar no sentido de amar, pois assim até demônios "creem", e não só creem como também entram em transe, estremecendo (φρίσσουσιν) diante do Senhor.

20, 21, 22, 23 - θέλεις δὲ γνῶναι, ὦ ἄνθρωπε κενέ, ὅτι ἡ πίστις χωρὶς τῶν ἔργων ἀργή ἐστιν; Ἀβραὰµ ὁ πατὴρ ἡµῶν οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ἀνενέγκας Ἰσαὰκ τὸν υἱὸν αὐτοῦ ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον; βλέπεις ὅτι ἡ πίστις συνήργει τοῖς ἔργοις αὐτοῦ καὶ ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη, καὶ ἐπληρώθη ἡ γραφὴ ἡ λέγουσα, Ἐπίστευσεν δὲ Ἀβραὰµ τῷ θεῷ, καὶ ἐλογίσθη αὐτῷ εἰς δικαιοσύνην, καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη. Mas você quer saber, homem tolo, que a fé sem obras é sem efeito? Não é assim que, Abraão, nosso pai, foi justificado por obras tendo oferecido Isaque, seu filho, sobre o altar? Veja que a fé cooperava com as obras e pelas obras a fé cominou em seu fim? E foi cumprida a Escritura que diz: E creu Abraão em Deus e isso foi computado como justiça, e foi declarado amigo de Deus.

    Aqui somos levados à próxima exemplificação de Tiago que é feita com base na história de Abraão, o amigo de Deus, para provar que a verdadeira é aquela reconhecida como presente no fiel apenas pela produção das obras.

    O presbítero começa desafiando o descrente ao se dirigir a ele como homem tolo (ἄνθρωπε κενέ). E somos levados a considerar a razão pela qual ele usa palavras tão duras. De fato, toda obstinação teimosa contra a Palavra de Deus, que é a Verdade, é tolice, é algo que vai contra a razão. É insensatez obstinada. Ora, a Palavra do Senhor não é contra a razão. De fato, não encontramos na teologia revelada qualquer resquício de uma fé inoperante, ou uma fé que salvando o homem alargue o espaço para a pratica de males sem qualquer risco de condenação. De fato, não negamos que segundo a potência absoluta de Deus Ele poderia conceder uma fé que quitasse o mal de uma vez por todas no homem no último segundo de sua vida. Mas não é disso de que estamos falando aqui, pois o que Tiago contesta é uma fé que não provoca uma transformação, que não produz amor, pois isso contradita qualquer noção real de salvação, pois verdadeira salvação é o homem ser salvo de seus pecados, da torção de sua vontade má a qual produz destruição. Sem a conversão da vontade não é possível conceder a presença da fé.

    Assim, Abraão foi justificado pelas obras na sua obediência ao se dispor a entregar Isaque, seu filho amado, em sacrifício. A passagem escolhida é sugestiva e aterradora. Mas ela é proveitosa para elucidarmos tanto o conceito de amor a Deus, como o conceito que estamos defendendo aqui ao interpretar a presença das boas obras como efeitos que sinalizam a presença da fé. Ora, a presença curativa da verdadeira fé provoca aquilo que chamamos de conversão. Essa é operada exclusivamente pela graça de Deus e alçada sem qualquer obra da nossa parte. A fé vem a nós sem qualquer mérito e nos salva, e nos salva porque mediante a fé fazemos dos méritos de Cristo os nosso méritos por estarmos unidos a ele, pois pela fé o que é de Cristo é nosso, já que o que é da cabeça pertence também ao corpo, tal como aquilo que pertence a Cristo é também de sua Igreja. Assim, pela fé, ganhamos a nossa justificação por termos a posse da justiça de Cristo. Mas o sentido de que as obras justificam se orienta segundo o mesmo sentido de que a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos (καὶ ἐδικαιώθη ἡ σοφία ἀπὸ πάντων τῶν τέκνων αὐτῆς) (Lc 7.36), ou de que o povo e os publicanos que se batizaram justificaram a Deus (ἐδικαίωσαν τὸν θεόν) (Lc 7.29). Ora, nem a sabedoria e nem mesmo Deus precisam de justificação. Considero, por tanto, o sentido da justificação no sentido de que tanto a sabedoria se fez valer segundo o triunfo dos seus filhos, quando quando os publicanos e o povo tomaram sobre si o batismo e fizeram jus à justiça de Deus. Assim, as obras fazem jus à presença da verdadeira fé, salvando - pelo ângulo da necessidade de consequência que se relaciona com a presença da fé -, como também a presença da fé real foi justificada pelos seus filhos na presença das boas obras. Assim, as obras solitárias não salvam, e só são salutíferas na posse da fé salvadora pela qual se fazem presentes as obras como efeitos, ou como a concreção da salvação, não no sentido causativo, mas no sentido consecutivo, pois a fé atinge a sua finalidade unida absolutamente à presença das boas obras. Nesse sentido as boas obras são necessárias para a salvação.

    Abraão, por assim dizer, justificou a sua fé por aquilo que na sua posse fez, e disso sua disposição de dispor Isaque em sacrifício testemunha. A questão é que o homem ordenado, perfeitamente sintonizado com a vontade divina, dispõe também de uma reta hierarquia de prioridades, e assim põe o que é vontade de Deus em primeiro lugar. A vontade divina possui o primado em relação à nossa vontade, que a Deus é subordinada. Por isso, se Isaque ocupava um lugar de honra e destaque entre os interesses de Abraão, a reta ordem das coisas exigia que Deus ocupasse lugar superior. Mas aquilo que é disposto como ideal, como a reta disposição das coisas na mente deve também ser concreta na realidade; e ao Deus pedir Isaque em sacrifício o Senhor colocou em prova a Abraão e assim testou a sua disposição em relação a Si. Certamente Gn 22.1-24 é um texto sacerdotal no qual consta uma evidente apologia contra o sacrifício humano, não incomum no mundo antigo e na época de Abraão. Nesse sentido entre uma das obediência de Abraão também foi não sacrificar seu filho após sua sinceridade diante de Deus ser evidenciada.

    O texto posto por Tiago visa explanar a realidade de que a fé cooperou (συνήργει) com as obras. A sinergia (συνήργει) significa uma operação que visa um efeito único produzido por duas partes cooperantes. Podemos aqui afirmar a realidade de uma "graça cooperante" que nos auxilia a atingir certos efeitos, tal como atos honestos de santidade. Assim os atos de Abraão cooperaram com sua fé na produção de um efeito. No entanto é importante percebermos algo: somente um justo é capaz de atos justos; só alguém com a alma ordenada é capaz de atos honestos. Aqui há, mesmo nesses atos de , a presença absoluta do Espírito nos habilitando para tais atos. Assim, é óbvio que do justo precede o operar justamente, e é preciso ser justo para praticar atos justos. Então, tal como os filhos justificam a sabedoria e o povo e os publicanos justificaram a Deus, também as obras justificaram a Abraão, o qual já cria poderosamente, e nesse ato Abraão foi chamado o amigo de Deus (καὶ φίλος θεοῦ ἐκλήθη).

    É importante notar que quando Tiago afirma essa justificação pelas obras, não é possível que ele esteja se referindo ao mesmo evento que Paulo, dado que o evento a que Paulo se remete antecede o nascimento de Ismael. Na época do nascimento de Isaque, em Gn 15.6, Ismael era adolescente, pouco antes disso Deus afirmou que da semente de Abraão o Senhor daria descendentes como as estrelas do céu. Já o sacrifício de Isaque se dá anos depois, com ele já crescido, conforme Gn 22.1-24. E aqui Tiago afirma que se cumpriu a Escritura, pois logicamente se se fala de um cumprimento, afirmamos algo já declarado anteriormente. De fato, vemos que Tiago fala da eficácia da fé, enquanto que Paulo fala da causação da justificação pela graça, mediante a fé. Paulo fala de uma obtenção da justiça pela fé, enquanto que Tiago fala do sinal exterior da eficácia da graça salvadora, onde a fé atinge a consumação da sua finalidade (ἐκ τῶν ἔργων ἡ πίστις ἐτελειώθη = e nas obras a fé atingiu o seu fim). Por isso a presença das boas obras são necessárias à salvação, não porque causem a salvação, mas porque mediante elas recebemos a declaração da justiça já presente naquele que está em posse da fé salvadora. Assim, as obras são sinais da graça necessários naquele que tem fé. Por isso as obras justificam a Abraão, pois justificam a fé operante de Abraão.     

24, 25, 26 ὁρᾶτε ὅτι ἐξ ἔργων δικαιοῦται ἄνθρωπος καὶ οὐκ ἐκ πίστεως µόνον. ὁµοίως δὲ καὶ Ῥαὰβ ἡ πόρνη οὐκ ἐξ ἔργων ἐδικαιώθη, ὑποδεξαµένη τοὺς ἀγγέλους καὶ ἑτέρᾳ ὁδῷ ἐκβαλοῦσα; ὥσπερ γὰρ τὸ σῶµα χωρὶς πνεύµατος νεκρόν ἐστιν, οὕτως καὶ ἡ πίστις χωρὶς ἔργων νεκρά ἐστιν. - Veja que os homens são justificados por obras e não por fé somente. E semelhantemente também Raabe, a prostituta, não foi justificada por obras tendo acolhido os mensageiros, fazendo eles irem também partirem por outro caminho? Assim, pois, como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.

    Tiago cita mais um exemplo da fé eficaz que produz obras de justiça. E antes do exemplo há a conclusão: os homens são justificados por obras e não por fé somente. Citando Raabe ele nos remete a Josué 2, onde Raabe acolhe os espias e os esconde, entrando também em aliança com eles, os despedindo depois por outro caminho (ἑτέρᾳ ὁδῷ). Assim, Raabe, uma prostituta (πόρνη), sabendo que Deus havia dado Jericó nas mãos dos israelitas, teme e se une a eles, fazendo a eles o bem. Ora, Raabe não faria o bem se a isso não estivesse disposta. Assim, seus atos sinalizam sua disposição para com Deus. Suas obras justificam essa disposição, ou melhor, a declaram. Ninguém pode ser elevado a isso senão na posse da fé salvadora, pois afirmamos a realidade de uma fé que opera (Gl 5.6), e é só essa que salva.

    O autor parte para a sentença: Assim, pois, como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta. Tiago estabelece uma analogia e ela deve orientar toda a nossa compreensão sobre esse bloco textual. Aqui não há oposição entre fé e obras. Nem mesmo há contraste com a noção Paulina de uma justificação independente da justiça própria. Tiago discute a natureza da fé salvadora à maneira daquilo que Paulo declara sobre a fé que atua pelo amor. Por isso, tal como um corpo com espírito está vivo, uma fé operante é viva. Por isso como um corpo sem espírito (σῶµα χωρὶς πνεύµατος) está morto (νεκρόν ἐστιν), a fé sem obras (ἡ πίστις χωρὶς ἔργων) está morta (νεκρά ἐστιν), ou seja, uma fé que não opera é impotente e nada leva a efeito, nem mesmo a salvação.  

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*O nome que traduzimos por Tiago vem do gregoΙάκωβος (Iákōbos), o qual é uma transliteração grega do nome hebraico יַעֲקֹ֛ב (ya'akov), o qual traduzimos no português por Jacó. Daí que nomeamos o pensamento teológico de Tiago de jacobita.

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