domingo, 31 de outubro de 2021

A Escritura Hebraica e a Distinção Semântica entre Matar e Assassinar

    O mandamento não matarás, que está presente em Êx 20.13, é bem melhor compreendido como não cometerás assassinato (לֹ֥֖א תִּֿרְצָֽ֖ח), e aqui se abre um leque de discussão interessante sobre a distinção entre matar e assassinar no Antigo Testamento, discussão à qual buscarei contribuir com algo neste texto e que evidentemente pode esclarecer dúvidas a cerca desse assunto que causa certas dificuldades entre os vários grupos cristãos.

    Aqui, com a promessa de ainda trabalhar em um texto maior, farei uma análise singela de termos hebraicos, assim como o seu emprego no texto bíblico, tentando extrair o substrato semântico pelo qual iluminaremos a questão, terminando por expor com maior clareza possível qual o significado do Sexto Mandamento e o que isso implica para a fé cristã que tem no texto da Escritura a expressão máxima da sua regra de fé.

    No texto hebraico podemos notar uma variedade de palavras empregadas tanto para o que compreendemos como matar, assim como assassinar. Estou fazendo uma distinção semântica entre essas duas palavras, dando um significado de licitude para a primeira palavra e de ilicitude para a segunda. Isso não significa que não usamos a palavra matar para designar um crime, mas sim que estou, por motivos de conveniência, dando os significados já expostos às palavras que escolhi para clarear o que quero com esse texto - levando em consideração que a palavra assassinar tem sempre evidente significado de ilicitude.

    Mas vamos às palavras:

    A palavra רָצַח (ratsah) de onde vem תִּֿרְצָֽ֖ח (tirtsah), quer dizer propriamente, segundo Strong, um homicídio (Dt 5.17; 1Rs 21.19; Jr 7.9), ou mesmo um assassinato acidental (Nm 35.11; Js 20.3) ou mesmo um ato de vingança (Nm 35.27). Uma flexão desse verbo em רֶצַח leva à sua substantivação para significar assassino.

    Já a palavra הָרַג, mesmo flexionada, é menos negativa, e envolve, de certo modo, algo como um "justiçamento" que não implica necessariamente em um ato pecaminoso, indicando até atos divinos (Dt 13.09 - 13.10 BHS; Jr 15.3; 2Sm 4.10), mas também pode se referir a atos francamente iníquos (Jz 9.5; 1Sm 22.21; 1Rs 2.5; Sl 94.6). Especificamente no Sl 94.6, há um paralelismo interessante entre as palavras הָרַג e רָצַח, ambas usadas em sentido evidentemente negativo.

    Entre palavras que possuem variação semântica, e que podem identificar tanto o sentido de matar quanto de assassinar, podemos identificar שׂחט (Jr 39.6; 2Cr 35.1,6). Também a palavra קטל, que significa matar, pode ser aplicada a Deus (Sl 139.19; Jó 13.15), e quando associado ao verbo רצח indica um ato iníquo como o assassinato (Jó 24.13).

    Preste atenção que para além do campo gramatical, há aqui evidente variação semântica, e mesmo palavras que evidentemente congregam em si um sentido apenas negativo, nos deixa patente a noção que no texto bíblico há uma distinção axiológica (de valor) entre o ato de matar e o ato de assassinar. Compreender isso é atentar para a verdade, um tanto quanto não evidente para alguns, sendo tida até mesmo como um contra-senso para outros, que há atos de matar como que permitidos pela Escritura, e atos como o assassinato que são vedados por ela. Notamos assim um nível interessante de abstração que levam à compreensão de atos empiricamente semelhante são, no entanto, axiologicamente distintos.

    No campo da reflexão sobre ética, é importante notar que, apoiados nos dados da Escritura Sagrada, nem todo matar é pecado ou transgressão contra a lei divina, e poderíamos expandir esse assunto para saber quais casos constitui matar, e quais casos constitui realmente um ato de assassinar. Evidentemente isso nos leva para longe da interpretação um tanto unilateralista, de certos grupos fundamentalistas, de Êx 20.13, a ponto de proibir qualquer pertença de cristãos às Forças Armadas, à polícia, condenando até mesmo o ato de legítima-defesa como ato de transgressão aberta contra Deus. Tenhamos em conta que às vezes é necessário o uso da força para proteger a sua própria vida por inúmeras razões, entre elas preservar a sua vida em função da educação dos filhos, para proteger a família etc. O uso da força que não visa tirar uma vida, mas proteger outra, não é ato condenável por Deus.

    Mas nunca é demais lembrar que a vida cristã é também um convite ao sacrifício, sendo o que o ato do sacrifício é tido até mesmo axiologicamente superior à legítima defesa. A escolha entre esses dois atos possíveis é uma escolha a ser feita entre algo bom e algo ainda melhor. A legítima-defesa é boa, e verdadeiramente boa; contudo o ato de sacrifício é ainda melhor, e o cristão está isento de culpa se escolhe ou uma coisa ou outra, tendo em mente que ainda assim é bom escolher o melhor.

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