terça-feira, 19 de outubro de 2021

Comentário de Tiago 4.11,12: (σὺ δὲ τίς εἶ) Mas você, quem é que julga seu próximo?

Texto Grego de Tiago 4.11,12:

11 Μὴ καταλαλεῖτε ἀλλήλων, ἀδελφοί· ὁ καταλαλῶν ἀδελφοῦ ἢ κρίνων τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ καταλαλεῖ νόµου καὶ κρίνει νόµον· εἰ δὲ νόµον κρίνεις, οὐκ εἶ ποιητὴς νόµου ἀλλὰ κριτής. 12 εἷς ἐστιν νοµοθέτης καὶ κριτής, ὁ δυνάµενος σῶσαι καὶ ἀπολέσαι· σὺ δὲ τίς εἶ, ὁ κρίνων τὸν πλησίον;

Tradução e Comentário:

11a) Μὴ καταλαλεῖτε ἀλλήλων, ἀδελφοί· ὁ καταλαλῶν ἀδελφοῦ ἢ κρίνων τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ καταλαλεῖ νόµου καὶ κρίνει νόµον· - Irmãos, não falem mal uns dos outros; aquele que fala mal do irmão ou e julga seu irmão, fala mal da lei e julga a lei.

    Um dos preceitos de mais difícil compreensão se relaciona com a questão da ilicitude do julgamento do próximo. Esse preceito se assenta em um dos ditos (λογοι) de Jesus registrado em Mt 7.1, onde temos: Μὴ κρίνετε, ἵνα µὴ κριθῆτε·, ou: Não julguem para que não sejam julgados. Ao que tudo indica, se analisarmos todo o bloco textual de Mt 7.1-5, tal preceito é um preceito de prudência, antes de um preceito absoluto. A distinção é importante, pois o preceito não implica em um proibição estrita ou absoluta, mas sim em uma obrigação relativa à contratação de responsabilidade, já que: "Pois com o critério com que julgas será julgado" (Mt 7.2). A contratação da responsabilidade está em você, através do julgamento, atrair uma medida para si mesmo. Paulo dirá mais tarde na Carta aos Romanos: Portanto, és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo (Rm 2,1); e: Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? (Rm 2.21-23).

    Todo juízo categórico traz em si o conceito de um padrão de medida universal. Os juízos morais absolutos com poderes condenatórios enquadram até aquele que os emite. O juízo de Paulo e de Jesus tem seu contexto na ação manipuladora dos judeus fariseus que, ao que parece, em virtude da hipocrisia, se portavam como monopolistas da condenação alheia, enquanto que tornavam ineficaz sobre si a regra pela qual condenavam os outros. A exigência de enquanimidade, segundo Jesus e Paulo, implica em nos submetermos às regras com a qual se submete os outros. Quando se foge desse padrão, ou seja, quando as regras são apenas regras para os outros, o que podemos perceber é que aquele que quer a regra para os outros enquanto não quer a regra para si mesmo, não quer a regra em função da produção da sua bondade, mas sim porque seu desejo está em dominar, em controlar e em manipular os outros. Quem assim não respeita a lei, também não respeita o irmão; julga tanto a lei, quanto julga o irmão submetido à lei; fala mal do irmão assim como fala mal da lei.

    A atitude de se portar como monopolista da interpretação das regras, no sentido da manipulação que torna sem efeito contra os próprios monopolistas todas as regras - ao menos quando o sentido de tais regras e leis condenam os monopolistas -, é uma das atitudes que mais evidenciam a presença de uma falha grave de caráter. A questão de fundo é que quem age assim não está apto para um relação honesta com quem quer que seja; e não estando apto para um relação honesta, não está apto aos atos de justiça e, por isso, ao amor e ao reino de Deus. Tal comportamento em uma comunidade de irmãos é absolutamente deletério, pernicioso, pois infunde agravo e pesado sentimento de injustiça.

    O texto de Tiago também fala sobre o falar mal ou καταλαλεῖτε, palavra que vem de καταλαλεω e significa, além de falar mal, também caluniar e incriminar. Aqui está presente uma noção de difamação radical contra o próximo unida à maldade intencionada. É, como tal, uma forma de "prestar falso testemunho" contra aquele a quem devemos amor, ou seja, é uma quebra radical do preceito, falta grave daquele que deve guardar sua alma da injustiça.

11b) εἰ δὲ νόµον κρίνεις, οὐκ εἶ ποιητὴς νόµου ἀλλὰ κριτής. - Se você julga a lei, não é cumpridor da lei, mas juiz.

    A segunda parte do versículo de nº11 opõe duas categorias, a categoria do ποιητὴς νόµου, ou o cumpridor da lei, e a categoria do κριτής, ou juiz, aqui também identificado, segundo o vs. 12, com o νοµοθέτης, ou legislador. A distinção estabelecida aqui implica em uma hierarquia, onde todos os cristãos são identificados com a categoria dos ποιητὴς e o único Deus à categoria do κριτής e do νοµοθέτης. Tendo considerado assim as coisas é preciso organizar nossas ideias quanto às informações para evitar uma confusão perniciosa de juízo.

    O fato de o autor apresentar, mesmo que de forma subentendida, Deus como juiz e legislador não implica na noção niilista de Deus ex lex - de resto uma terminologia de um latim horrível. Essa doutrina implica que o bem é bom unicamente pela determinação divina, e que se Deus quisesse fazer do bem mal e do mal o bem Deus assim poderia fazer. Essa consideração parte de um ponto de vista errôneo a respeito do bem devido. Sabemos que Deus não pode fazer do mal um bem porque o mal-moral tem certo constituivo que chamamos de formal. Assim, Deus também tem uma forma e a forma do seu Ser é aquela pela qual ele opera, e o pera bem, pois Deus é a própria Forma do Bem. Se o mal é a ausência do bem devido, Deus não poderia fazer da ausência do ser devido em sua formalidade um bem. Também aplicada a Deus a noção de ex lex teríamos que afirmar certa composição em Deus, pois implica que ele pode manipular o próprio bem em si, como se o seu Ser e a sua vontade pudessem ser radicalmente autônomos - o que levaria à consideração que o bem é nada, ou até que é criado por uma força superior. Deus não seria o bem, mas teria um bem - o que é absurdo. Ao contrário disso, Deus, tanto quanto não pode fazer de um quadrado um triângulo, não pode fazer do desejo assassino um bem, nem mesmo fazer boas considerações do desejo do homem ou dos anjos de se porem acima de d'Ele soberbamente. Esses são constitutivos deformados, e se uma forma tem sua essencialidade própria ela não pode ser nomeada segundo a deformação (isso contraria a definição), pois o mal é tanto defecção como deformação. Portanto Deus não é quem manda, ordenando uma lei como se essa lei não refletisse aquilo que ele mesmo É em sua essência, mas apenas aquilo que ele quer, como se o seu Ser e o seu Querer fossem absolutamente distintos um do outro. Obviamente que Deus poderia fazer coisas diferentes das que existem; homens alados, com outra constituição alimentar etc. Mas em tudo isso jamais Deus transgrediria a forma do bem, pois ele jamais transgrediria seu próprio Ser (dado a impossibilidade de Deus ter tal volição, sendo pleno de todas as perfeições).

    O que Tiago afirma não é que Deus poderia se portar como um manipulador da lei agiria, mas que Deus é quem congrega em si todos os atributos essenciais para proferir um reto juízo sobre cada um dos homens. E se nos atermos a Mt 7.5 entenderemos que o que se requer para realizar tal juízo é ver claramente, como está no texto: Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão. A ideia é que há a necessidade de reunir certas condições para se tirar o cisco do olho do irmão, tal como o ver claramente. Certamente que aqui está excluída toda forma de calúnia; mas também Jesus, como Deus, o único juiz, pode proferir um juízo condenatório sobre o ímpio tanto porque ele congrega em si todas as condições para ver claramente, quanto porque ele não é condenado naquilo por causa da medida que usa quando condena. Se ele chama de hipócrita é porque julga que alguém o é, e pode ver isso claramente. Também o texto quer deixar claro que não podemos nos portar como um verdugos do irmão sem a devida misericórdia requerida por aquilo que Tiago chama de lei da liberdade, que preceitua o proceder tal como alguém julga reto - se submetendo à regra que acha que o outro deve se submeter -, como exercer misericórdia para alcançar misericórdia (Tg 2.12,13).

    Outro ensino interessante que podemos predicar desse versículo é que Tiago traça uma linha divisória entre o cumpridor da lei e o juiz e legislador. Todos estamos do lado de cá da linha, e apenas Deus está do lado de lá como juiz. E quem se porta como legislador e juiz quer tomar o lugar que pertence a Deus, usurpando seu trono Deus, caindo em soberba e orgulho, pecados que levaram à queda de Satanás. Quem atravessa a linha se quer como dono do irmão, e não o seu igual. E sobre isso podemos nos remeter a uma das λογοι de Jesus: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os grandes exercem poder sobre as nações. Não será assim entre vós. Ao contrário, quem desejar ser grande entre vós se tornará o vosso servo. E quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso escravo. (Mt 20.25-27). Ao que tudo indica, Jesus não está traçando o caminho correto em direção à grandeza, mas está colocando todos na mesma linha: quem ultrapassa a linha toma a posição de servidor assim como a de escravo. Assim, o Filho do homem é o modelo que serve, já que é no servir e não no exercer domínio despótico sobre outro onde está a verdade do Reino de Deus.

12) εἷς ἐστιν νοµοθέτης καὶ κριτής, ὁ δυνάµενος σῶσαι καὶ ἀπολέσαι· σὺ δὲ τίς εἶ, ὁ κρίνων τὸν πλησίον; - Um só é o legislador e juiz, aquele que pode salvar ou destruir; mas você quem é que julga o seu próximo?

    Aqui Tiago sinaliza a verdade: um só é o legislador (εἷς ἐστιν νοµοθέτης), e é só ele que tem poder (δυνάµενος) para salvar (σῶσαι) e destruir (ἀπολέσαι). Profunda a comparação estabelecida. Tiago faz duas atribuições especiais àquele Único legislador e juiz: salvar e destruir. Aquele que é o juiz absoluto é, ao mesmo tempo, o absoluto salvador. Geralmente o homem vulgar não leva em consideração o desnível existente entre o Ser de Deus e o nosso ser. É como se o presbítero quisesse gravar em nossa mente a grandeza do destruir mediante juízo condenatório pela comparação com o poder de concessão da graça salvadora que pertence exclusivamente a Deus. Reflexivamente, se alguém não pode salvar, não pode condenar, ou aplicar juízo condenador. Assim, apontando para a grandeza da obra da salvação, Tiago estabelece uma medida que informa o quão absurdo é aplicar a terceiros juízo de condenação, em especial para aqueles que estão no nosso horizonte de convívio, como estão os irmãos comuns. Certamente Tiago exige a cautela que exclui qualquer espécie de comportamento grosseiro e desmedido, requerendo temor e tremor quando proferirmos qualquer palavra apreciativa a respeito de quem quer que seja.

    Depois de sinalizar a infinita distância que nos separa do Único juiz e legislador, estabelecendo um paralelo entre a autoridade de salvar e a de condenar, Tiago pergunta de forma demolidora: Mas você, quem é (σὺ δὲ τίς εἶ)? A pergunta "Quem é você?" pode também ser ouvida desta forma: Que poder você tem?, pois ao indicar a potência salvadora de Deus e a potência destruidora, Tiago aprofunda mais ainda a separação que estabelece os limites entre o único juiz e o cumpridor da lei. No fim, ao traçar a medida divina Tiago também nos coloca no nosso próprio lugar. Humildade, no Novo Testamento (ταπεινος), tem a ver com aquilo que não se levanta para muito além do chão. Se o céu eterno é a morada de Deus, o se erguer não para muito além do chão demarca a nossa condição diante de Deus e também do próximo. Assim, nem Tiago, nem Cristo e nem Paulo querem retirar a verdade do erro alheio de diante dos nossos olhos. Eles não visam nos cegar para a verdade a respeito dos homens - pois transformar a verdade em mentira não pertence aos feitos de Deus -; antes querem nos fazer ver a verdade dentro de nós para que possamos olhar com certa consideração indulgente e misericordiosa para aquele que erra perto de nós. Também querem certa prudência para temperarmos nossas considerações sobre os outros de modo que não venhamos a nos condenar dentro da nossa própria condenação, pois nada mais absurdo do que o homem se condenar naquilo mesmo que aprova (Rm 14.22).

    Tendo tudo isso em vista, ouçamos a pergunta: Mas você quem é que julga o seu próximo?

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