quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Sacrifício Vicário de Cristo: Análise Exegética e Trabalho Hermêutico sobre Textos do Antigo e Novo Testamentos

    Que na Substituição Penal Deus realiza o derramamento da ira não em referência a Cristo, como pensam os detratores da doutrina, mas sim em relação àqueles que Cristo representa na Cruz, pois ali Jesus assume uma morte, juízo da lei, não por causa de si, mas em razão da humanidade que desobedeceu a Deus, trazendo maldição e morte sobre si, é algo óbvio. Cristo se faz sacrifício pela culpa afim de remover a culpa mediante a aceitação da pena, a nossa pena, que é a maldição da morte. Nisso concordam Calvino, Turretini, Bavink etc.

    Mas passo agora para a análise de textos bíblicos nos quais busco sinalizar a viabilidade bíblica de uma teologia da expiação com as notas distintivas da teologia da substituição penal.

    A começar pelo cântico do Servo Sofredor de Is 53, é sintomático que em Is 53:10 Deus (YHWH) é o agente do esmagamento do Servo Sofredor - agradou Deus moê-lo -, justamente quando o servo se coloca como sacrifício de culpa ('asham – que também significa culpa – Salmo 68:21,22 -, e aí a questão dos reformadores colocarem a ideia da “transferência da culpa”, que poderia ser entendido mais exatamente como a responsabilidade em lidar com a culpa que cai sobre o sacerdote que deve lidar com isso mediante o “sacrifício de culpa”, ou entender que Jesus ao morrer estava executando a obrigação sacerdotal de realizar um sacrifício para fazer cessar a culpa). O Servo ser destroçado por YHWH (sim, esse é o significado do verbo dac'o, que está no Piel, que é a voz ativa intensiva do hebraico), e se colocar como sacrifício de culpa ('asham) são coisas que ocorrem de forma simultânea. Mas outro detalhe é que em Is 53:05 temos que ele foi destroçado (meduca') por causa das nossas iniquidades (me'avnteynu). E o "destroçado" está no Pual, na voz passiva intensiva do hebraico – o servo é quem recebe o destroçamento -, sendo que em 53:10 o agente do destroçamento por causa dos delitos é YHWH, o que implica que o castigo (musar) da paz que está sobre o servo explica que isso se refere diretamente ao servo que, ao mesmo tempo, é o sacrifício da culpa ('asham) que é destroçado por YHWH, realizando a remoção da culpa e a expiação.

    Também é preciso colocar na equação que Cristo, em Marcos 15:34 (Hó Theós moi, hó Theós moi, é'is ti egkatelipés) e Mateus 27:47 (Theé moi, Theé moi, inatí me egkatélipes) clama por causa do abandono divino. Aqui Jesus não fala no lugar de ninguém e nem simbolicamente - em nenhum evangelho Jesus fala como se estivesse falando por outro - e Turretini acertadamente afirma que deve ser compreendido aqui uma certa retirada do senso de favor, o que não implica na perda da retidão, da graça de Cristo e nem mesmo da unidade e do amor divino que, paradoxalmente, acompanha o Filho para que o Pai seja o Deus Pai dos abandonados.

    Em Mateus 9:44, Jesus afirma que ele será "entregue" (paradídostai), e em Marcos 9:31 se diz que o filho do homem "está sendo entregue" (paradídotai), e em Lucas 17:22 diz que ele será entregue (paradídostai). Mas temos em Romanos 4:25 que Jesus "foi entregue por causa das nossas transgressões" (´os paredóthe diá tá paraptomata). Então esse "entregar" resolve a nossa questão junto a Deus, questão que é marcada pelas nossas transgressões.

    E tanto mais importante é que a passagem de Rm 1:18-31 inicia dizendo que "A ira de Deus se revela do céu" (Apokalyptetai gár 'orgé Theou ap uranou), e que Deus, em Rm 1:24, entregou (parédoken), nesta ira, o homem ao desejo perverso do seu coração. Perceba que isso ocorre em Rm 1:26, e 28, onde se diz que Deus "entregou" (parédoken). Obviamente podemos dizer que há uma negatividade neste "entregar", ainda que entendamos que o mesmo Jesus se entrega a si mesmo pelo pecador, o que não negamos (Gl 2:21 - paradóntos eautón hyper emou).

    Mas coloco uma interpretação fundamental aqui. É sabido que em Gênesis a serpente, ao ser condenada, recebe a punição de comer o pó (Gn 3:14), tal como do pó é feito o homem. Então fazemos a interpretação, ligando o juízo da serpente ao juízo de Adão. Obviamente o homem foi, por um justo juízo, entregue ao poder das trevas em função do pecado (Ef 2:1-4). Mas Cristo também caiu no poder das trevas, ou melhor, foi entregue ao poder das trevas, dizendo: "mas esta é a vossa hora e o poder das trevas" ('all' a´úte ´estín hymôn he hôra kaí he exousía toû skótos) (Lc 22:53), então podemos dizer que Jesus cumpre em si o juízo do homem que pelo pecado é abandonado por Deus ao poder das trevas, e isso por causa das transgressões do próprio homem - a Substituição Penal não é uma ideia inútil e nem infundada -; mas isso jamais ocorre em referência a Cristo, senão que pela economia da salvação, já que cumprindo em si o destino do pecador, ele destrói esse mesmo destino para o pecador que aceita Cristo pela fé. Uma vida entregue por vidas em sentido qualitativo.

    Seguindo todos esses dados, acrescentamos mais: em II Coríntios 5:21 é dito: Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós, para que nós viéssemos a ser nele (em Jesus Cristo) justiça de Deus (tón mé gnónta hamartían hyper hemon hamartían epoíesen, hína hemeis gnometha dikaiosín Theo en autô). É sabido que no Antigo Testamento tanto a palavra para 'transgressão' como a palavra para 'sacrifício pela transgressão' são as mesmas (hath't - Levítico 4:3,8,14,20), o que corrobora com a ideia de que Jesus se fez pecado, como sacrifício pelo pecado. Embora alguém possa desviar a atenção aqui, é necessário compreender que na Escritura em II Coríntios 5:21 se diz que "Aquele que não conheceu pecado, ele se fez pecado", e podemos seguir ligando a interpretação a Gálatas 3:13.

    Sigamos a interpretação: em Gálatas 3:13 temos o texto: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição por nós, porque está escrito: maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Christós hemas exegórasen katáras toû nómou genómenos hyper hemôn katára, ek tês hóti gegraptai, Hepikátaros pâs hó kremámenos epí schíló). Quase nunca se fala de quê a Cruz nos resgata, e obviamente aqui temos a resposta: da maldição da lei, que é pena do pecado. O sangue nos resgata desta maldição, pois Cristo se fez “kátaras”, maldição, e maldição é a morte que faz o homem ir ao pó e a mulher às penas do parto, essa mesma maldição que, em seu gênero, Jesus assume, assumindo em si a defecção do homem, pois assume a nossa morte, juízo da lei, juízo de Deus, em sua morte, e nós assumimos, pela fé, a sua vida, que é o Espírito prometido (Gálatas 3:14 – hina eis tá ethne he elogia tou Abraam gnetai en Christô Iesu, hina tem epangelía tou pneumatos).

    Mas a quê se refere a "maldição do madeiro"? Ela se liga às palavras de Deuteronômio 21:22,23, onde o homem que cometeu crime punível com morte, e que após a punição foi pendurado em uma estaca ou árvore, não poderia pernoitar pendurado, já que era "maldito de Deus" (ci-killat 'elohim). Crisóstomo argumenta que essa passagem tem um duplo aspecto, onde Cristo substitui uma maldição por outra. Obviamente Jesus não poderia ser maldito intrinsecamente, já que jamais cometeu pecado. Contudo ele poderia ser suspenso no madeiro, assumindo a nossa maldição. Ele é enfático quando afirma: "Imaginemos que houvesse um condenado à morte, mas um inocente quisesse morrer voluntariamente por ele, e o livrasse da pena. Foi assim que agiu Cristo"1. Notem o que ele diz: "foi assim que agiu Cristo", ou seja: assumiu a pena do crime.

    Mas em um outro comentário a II Coríntios 5:21, onde se diz que Cristo se fez pecado por nós, João Crisóstomo, com maior intensidade ainda, diz: "Se um rei visse um ladrão e criminoso ser torturado, e entregasse à morte seu filho amado, unigênito, genuíno, e além da morte transferisse a responsabilidade do crime para o filho, incapaz de tal crime, afim de salvar o réu e livra-lo da infâmia, e após o elevasse a uma grande dignidade e lhe concedesse salvação e glória [...]"2. Nunca é demais afirmar que Crisóstomo não é um "teólogo reformado" - o que seria algo absurdo e anacrônico -, mas apresenta em seus exemplos notas obviamente aproximativas quanto à teologia da expiação abraçada na teologia reformada - o que seria um disparate negar.

    No cômputo geral privilegio a interpretação que parte da premissa de que a expiação contém aspectos penais e substitutivos que não se constituem, obviamente, na totalidade do quadro da teologia da expiação. Poderíamos enfatizar a destruição dos poderes diabólicos, a recapitulação da humanidade, a questão pneumática e observar a expiação do ângulo da cura e a aplicação da obra da expiação naqueles que aceitam Cristo pela fé. Mas para os propósitos a que se subordinam o texto, é suficiente o que já foi dito.

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1] João Crisóstomo - Comentário à Carta aos Gálatas. 3:13
2] João Crisóstomo - Comentário à Segunda Carta aos Coríntios. 5:21

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