quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A Lei Natural, a Vontade e a Salvação

   A ideia própria de lei natural não se permite ser ela mesma hipostasiada a determinadas "escolas" da lei natural. Sim, o que pode ser considerado lei natural em Platão é extremamente distinto do que Hobbes ou mesmo Locke consideravam lei natural - quem estuda a questão sabe exatamente disso. A noção de "lei" natural é antes a consideração de que há uma realidade à qual a mente humana deve prestar contas, e à qual ela tem acesso, mesmo que parcialmente, ainda que em seu estado pecaminoso.

   Nem no cristianismo se considera uma disjunção entre "lei natural e fé" - coisa contrária à própria razão, porque ambas partilham da unicidade da realidade à qual a fé e o conhecimento prestam contas. E para ser claro aqui nem  mesmo o demônio ignora essas leis, já que ao se desfazer da hierarquia divina ele deve estabelecer a própria, caso contrário também não seria remoído no inferno pela consciência da sua culpa, assim como o ímpio o será, sem ter poder ou vontade suficiente para reverter a sua situação.

   Por mais exótico que possa parecer, o que vai à frente ilustra a questão: alguém preso no vício (da carne; sexo, glutonaria; ou do espírito; mentira ou orgulho) não perdeu a sua consciência que tal vício possa ser destrutivo, e mal para si. Mas a sua disposição o impede realmente de mudar. Ele reconhece, por contraste, a contradição entre o ideal e o real em sua vida, ou a contradição entre o que ele é e o que ele deveria ser (sim, ele tem certa noção natural do certo e do errado, ainda que não plena).

   Daí surge a distinção entre "intelecto e vontade" na teologia, pois a salvação não é lá tanto um evento de ensino esclarecido quanto a cura de uma vontade, uma habilitação da vontade para se unir à verdade do intelecto. E é por isso que João afirmou que ainda que muitos dos judeus crescem em Cristo como o Messias, eles não confessavam por medo (Jó 12:42); da mesma forma os demônios sabiam ser Jesus o Filho de Deus, mesmo enquanto anjos caídos (Lc 4:34). De Deus não é o bastante saber, é necessário amar. É por isso que oramos não apenas para alçar conhecimento em Deus, mas também amar o que conhecemos para que não sejamos semelhantes aos demônios.

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