quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Breve Comentário à Fenomenologia do Espírito de Hegel

    Terminei de ler o "Fenomenologia do Espírito" de Hegel e tenho certo sentimento ambíguo em relação à obra, que certamente é um dos livros de filosofia mais difíceis (se não o mais difícil) que alguém pode ler.

   Há muito o que aprender lendo esse livro, a começar pelo treino mental em acompanhar um discurso dinâmico com vários giros dialéticos, onde o que é negado aqui (x), pode ser afirmado lá na frente só que não da mesma forma (x.y = z) como é o caso do tema da intuição, que começando com a intuição sensível, em sua abstração é negada como intuição sensível, sendo seu conteúdo suprassumido no conceito, permitindo um retorno a uma intuição transfigurada em um segundo momento. Por exemplo: quando você enxerga um livro você tem uma intuição (experiência) do livro carente de conteúdo; em um segundo momento, você lê o livro e vai preenchendo a representação com determinados conteúdos; em um terceiro momento, você suprassumiu a primeira impressão do livro, junto com o seu conteúdo, elevando a experiência ao conceito, e ao retornar à visão do livro que você viu primeiramente você tem uma intuição absoluta, totalmente transfigurada. Aqui temos o retorno transfigurado da primeira intuição já iluminada pela totalidade do processo de compreensão do seu conteúdo, sendo a figura mental do primeiro processo, agora elevada ao nível do conceito.

   A Fenomenologia é propriamente a descrição do caminho que leva à destruição da distância entre a representação e a verdade, e nesse sentido a aparência e a verdade são encontradas unidas em uma nova configuração absoluta mediante a superação da contradição entre uma coisa e outra, na qual uma coisa não é estranha à outra, mas são unidas e estão junto a si em uma nova configuração que se encontra suprassumida no puro saber. O processo próprio desse modo de suprassunção é o processo histórico, processo que vai do mais abstrato ao mais concreto.

   Podemos dizer que Hegel manifesta de forma altamente diferenciada aquilo que viria ser chamado de "filosofia da consciência", pois na Fenomenologia vemos a busca da consciência pela unidade da realidade na sua mais alta configuração, cuja estrutura mesma está no próprio modo de consciência, e aqui Hegel ainda está na esfera do cristianismo quando afirma a substância absoluta como sujeito porque consciência que se sabe como sabe.

   Mas dentre alguns problemas na obra de Hegel podemos detectar a concepção univocista, de onde vieram acusações, muito justificadas, de que Hegel, como Espinosa, era um "panteísta". Hegel, no capítulo VII afirma que a natureza humana é o mesmo que a natureza de Deus, ou que na figura da religião, o espírito, ainda que absolutamente manifesto, carece da elevação ao conceito, o que seria o mesmo que carecer da superação que já aludimos da separação entre a "figura" (Gestalt) e verdade (Varheit), pois para Hegel o sobrenaturalismo causa uma cisão na realidade, já que o Espírito aqui está apresentado como um "Outro", o que seria o mesmo que, para Hegel, afirmar uma fragmentação no Uno, e portanto uma imperfeição.

   Para Hegel, na religião, antes de que na ciência, o conteúdo do Espírito foi manifesto, não obstante ao fato de que é apenas na ciência que a tarefa do Espírito como conceitualizante é levada a cabo. E aqui é necessário pontuar duas relações que estão dadas na fé e na filosofia e que, segundo o trabalho de Hegel, deveriam desembocar no saber absoluto. A primeira relação é entre fé e conhecimento e a segunda é entre filosofia e ciência.

   A primeira relação poderia ser compreendida pela expressão anselmiana: Fides Quaerens Intellctum (fé em busca de compreensão). A fé aqui é uma busca, ainda que ela tenha em si todo o senso de direção a partir de um dado já fornecido, que é a revelação. A distinção entre fé e conhecimento está dada nessa tenção, já que a fé é o fundamento das coisas que se esperam, e que não temos à mão a não ser no modo de esperança. Há um hiato entre fé e compreensão, já que a compreensão aqui se dá também no modo de prolepse - antecipação -, e não de realidade consumada. O cristianismo entende que conhecer a totalidade de Deus é ser Deus, mas ainda há uma modo de conhecimento apropriado para a nossa natureza. Hegel pretende romper esse hiato, colocando o conteúdo da fé no modo de conhecimento pleno, e disse ter levado isso a cabo em sua própria filosofia. É por isso que muitos afirmam que ao pretender consumar a fé a filosofia de Hegel é uma tentativa de, partindo da fé, destruí-la. Por natureza seu sistema pretendia ser totalitário, gerando outras sambas totalitárias.

   Outra relação se dá de modo semelhante à primeira, já que Hegel se lança no projeto de transformar a filosofia, enquanto projeto de busca, em Sofia, ou conhecimento da sabedoria. Logo no prefácio da fenomenologia ele declara abertamente que o empreendimento que tinha diante de si era a transformação da filosofia em ciência e ciência fundante de todo o saber de modo apotídico. Não é o bastante lembrar que que diz respeito à filosofia essa se queria "amante" da sabedoria e não "possuidora" dela de modo absoluto. O hiato prudente entre filosofia e Sofia é aquilo que em Hegel se busca superar, e superar mediante o saber absoluto. Podemos dizer que para Hegel, não há mais filosofia depois de Hegel, já que as várias figurações do saber chegam a seu termo em sua síntese absoluta.

   Essa unidade absoluta entre "fé e razão", que antes de ser configurada como uma tensão, caiu aqui no modo de uma coisa intuída, ainda que na modalidade do espírito (Geist), e essa transformação da filosofia em Ciência é a inauguração própria do paraíso terrestre, coisa contra qual se revoltaram tanto Schelling quanto Kierkegaard. Contra o idealismo objetivo de Hegel Kierkegaard opôs a categoria da infinitude subjetiva apaixonada a partir da qual asseverou o valor infinito do sujeito contra a objetivação hegeliana, afirmando ainda a continuidade do hiato, da alienação entre o existente e o absoluto, ainda que objetivação hegeliana fosse levada a cabo partir do conceito de Espírito. Schelling, partindo das categoria da revelação, opôs à unidade hegeliana entre fé e razão a cisão existencial reconhecida no modo da busca (não há síntese absoluta entre sujeito e objeto na era presente), empurrando para o futuro a unicidade (A Igreja de João) da Era do Espírito.

   Enfim, a obra hegeliana é uma grande marco do espírito humano, prenhe de ambiguidades, e de detalhes infinitamente verdadeiros, como a sua oposição ao positivismo cientificista, a crítica ao intuicionismo e aos entusiastas que colocavam a suprema realização da comunhão entre Deus e o homem no "sentimento" (Schleiermacher), a noção verdadeira de que a família é o fundamento do Estado e que a realidade é constituída por estamentos, sendo a inteligência a suprema manifestação no ser etc. E assim é a Fenomenologia do Espírito, livro que certamente deve ser lido e relido para ser de fato compreendido, mesmo que não sejamos transformados em Deus em função disso - para a tristeza de Hegel.

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