quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A Palavra de Deus como Pessoa

   Uma das coisas mais interessantes que acontece quando se dirigem aos protestantes com a seguinte afirmação: "A Palavra de Deus é uma pessoa", é que depois disso segue-se o velho costume de apresentar catecismos, bulas e a ideia de que a fé incipiente é "fé implícita", porque isso é igual à confiança no ensino da Igreja e tal - o que historicamente é algo problemático, se pararmos para prestar atenção -, negando o caráter existencial da afirmação que há uns segundos atrás lançou contra esses seres fundamentalistas que colocam uma Palavra Escrita acima de tudo o mais.

   Mas o interessantíssimo deste fato é que a ideia de que a fé se dirige a Jesus como uma pessoa que salva, sendo a fé uma abertura ao Cristo, de modo que assim você pode participar com a alma dos seus benefícios, sendo isso fundado em uma notícia, ou uma boa notícia, em um "conhecimento trazido pela fé acima do estado atual da dogmática eclesiástica", é justamente a ênfase do protestantismo, ênfase que foi reavivada por teólogos como Emil Brunner e Barth, por exemplo.

   Brunner é um explícito em dizer que a redução de Deus às ideias de Deus é algo impossível, sendo a própria teologia uma organização sistemática de sinais que sempre apontam para, mas jamais manifestam a realidade absoluta do objeto da fé como tal - já que é papel do Espírito Santo harmonizar no espírito do homem o conjunto dos sinais que sinalizam para o objeto da teologia e o objeto da própria teologia, que é a automanifestação de Deus no mundo. Obviamente que pontos equívocos podem estar presentes na teologia, e é por isso que é sempre saudável guardar em mente que Cristo é uma pessoa, que a Palavra de Deus é uma pessoa, e não uma doutrina; e ainda que tal doutrina seja a mais ortodoxa possível, ela cumpre uma função limitada à sua finalidade que deve ser complementada pela auto-manifestação do Deus que quando se manifesta só pode se manifestar com espírito e poder. O sinal só é autêntico quando aponta adequadamente para a realidade sinalizada.

   Essa ênfase é a ênfase filha do século XX e que ganhou espaço na teologia pela abertura desse tema pelo teólogo/filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, o qual exerceu influência póstuma poderosíssima na teologia protestante e também na filosofia. O existencialismo - que começou como uma filosofia cristã - afirmava o caráter fragmentário do homem enquanto tal e o equívoco entre o conhecimento atual e a realidade absoluta - em função do pecado -, daí o encontro com Cristo não ter necessidade de ser mediado pela cultura, nem pela cultura eclesiástica, já que o encontro se dava no instante eterno onde o homem se acha face a face com Deus. O homem não precisa da mediação da cultura para se achar com Deus, porque a cultura real é algo que só pode ser fundamentado nesse encontro - o princípio é sempre maior do que aquilo que dele é derivado.

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