domingo, 30 de janeiro de 2022

O Servo Peregrino

    Se em Caim temos o princípio mundano do estabelecimento dos povos ligados à terra, e por isso à concentração do poder e do império, em Abel temos o pai espiritual dos povos nômades não ligados à terra. Abel é o pai espiritual dos peregrinos. Abraão - filho de Héber (in Gn 11.14ss, de onde os israelitas recebem o nome de hebreus), e filho de Sem, o mais abençoado dos filhos de Noé – foi o pastor chamado por Deus com a promessa de herdar uma terra específica. Aqui, como encontramos em Gn 12, temos o início de Israel, a nação oráculo que veio a ser a voz divina no mundo para orientar todos os homens no caminho do Senhor. Assim como Abel, Enoque e Noé, ficamos sabendo que Abraão, antes Abrão, ouviu a Deus, e assim o seguiu. Seria muito difícil seguir por esse caminho se Abraão fosse alguém ligado à terra, aos bens etc., não dispondo da liberdade necessária para obedecer a Deus.

    Aqui temos o sentido da necessidade da liberdade para obedecermos, pois na ausência dela cumprir o que quer que seja da palavra de Deus é algo sumamente impossível. É exatamente nesse sentido que Jesus condena o amor às riquezas, pois elas aumentam a nossa gravidade que nos prende a esse mundo, sendo que o amor a elas nos impede de ouvir a Deus. As riquezas não são um mal em si. Mas aqui pode surgir uma dúvida: não foi a Abraão prometida justamente uma terra? Também aqui se impõe uma distinção: Abraão é filho de um tempo em que a humanidade já havia alcançado grande parte do mundo terra. O grande problema de Babel, foi antecipar um bem futuro, o possuir uma cidade. Ao tentar meter o carro na frente dos bois Ninrode e Babel, em sua ganância desenfreada atrapalharam o fluxo natural das coisas, perturbando a ordem divina – pela qual foram justamente castigados.

    É significativo que o início da peregrinação de Abraão se desse justamente a partir da terra de Babilônia, pois é de lá, da terra da revolta e da confusão, que também nós iniciamos a nossa peregrinação em direção à terra que nos foi prometida por Deus, a terra da graça e da liberdade estabelecida pela vontade santa do Senhor, e não pelo egoísmo do nosso pecado. Toda caminhada e toda a peregrinação da alma em direção ao Senhor começam simbolicamente em Babel e terminam em Jerusalém, a Cidade de Deus. Agostinho esclarece a dinâmica disso na interpretação do Salmo nº 64.2: Começa a sair quem começa a amar. Pois muitos saem ocultamente, e os pés dos que saem são os afetos do coração; e saem da Babilônia. O que significa: Babilônia? Da confusão. Como se sai de Babilônia, isto é, da confusão? Os que antes eram confundidos, devido à semelhança nas ambições, começam a se distinguir [ou destacar] pelo amor; já distintos não são mais confundidos.

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