sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

As Dores Infernais de Cristo e a Refutação de Arianismo e Nestorianismo na Teologia da Expiação Luterana e Reformada

    Uma das mentiras influentes contra a teologia da substituição penal é que se levada às últimas consequências ela implicaria em arianismo ou nestorianismo. Volta e meia essa mentira, como um cadáver que ainda anda, volta a circular. Turretini, já no século XVII, havia dado resposta a esse tipo de acusação, falando da natureza do abandono de Cristo na cruz, abandono que mesmo que afirmado na Escritura os detratores dessa teologia insistem em negar:

"Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direita (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32)1.

    Todas os destaques do texto acima negam coisas importantes a serem pontuadas aqui: 1) Em relação ao destaque que diz "este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno", devemos entender que a natureza intacta de Cristo para Turretini reduz a zero a possibilidade de ele ser destruído pela pena a ele infligida, o levando ao desespero de salvação. Assim, não existe possibilidade de arianismo ou nestorianismo porque a pena é relativa à natureza humana, não à natureza divina, que embora sejam hipostaticamente unidas, podem ser concebidas em suas propriedade próprias, já que uma pena "temporal e relativa" não afeta a eternidade da natureza divina, tal como a fome diz respeito apenas à natureza humana.

    Então podemos também afirma que: 2) Em relação ao destaque que diz: "não com respeito à união da natureza", não há possibilidade de nestorianismo. A pena aplicada a Cristo - assim entendem os teólogos reformados -, não implica na diluição da união entre as naturezas humana e divina em Cristo, a qual, como confessa a fé cristã, uma vez consumada permanecerá assim para toda eternidade. E tendo em vista, como dissemos, que a pena é, em sua constituição temporal e relativa, diz respeito à natureza humana, e não na dissociação de naturezas.

    Também podemos afirmar que: 3) Em relação ao destaque que diz: "ou da união de graça e santidade", Turretini assevera em Cristo a ausência completa daquela maldade característa da perda da graça, ou do bem devido. Assim a pena que Jesus padece não é semelhante, nesse sentido, à pena dos condenados, pois essa pertence àquele que realiza o ato mal, ato que não pode ser localizado em Cristo. E mesmo que Turretini assevere uma privação (privatio), não se trata de uma privação cuja "presença" torça a justiça e a santidade de Cristo.

    Também podemos afirmar que: 4) Em relação ao destaque que diz: "nem nunca ficou sozinho", isso diz respeito à unidade fundamental que subjaz a consubstancialidade eterna entre o Pai e o Filho. Como a natureza de Cristo contém unidas em si a natureza divina e humana de forma substancial, tal separação ontológica é impossível, pois o abandono, ainda que radical, diz respeito à perda da "afeição de vantagem", e ao "senso da ira divina", pois tal afeição de vantagem é uma graça criada na alma do justo cuja ausência não implica na destruição da ordem da alma de Cristo. Assim a pena, não é a pena própria do pecador como sofrida por ele se esse fosse submetido ao mesmo esmagamento que Cristo. É a pena do pecador que cai sobre Cristo, mas não a pena do pecador tal como ele o sofresse em sua condição própria de quem cometeu o pecado - já que a fraqueza da sua alma pecadora desabaria eternamente sob o mesmo peso.

    Assim, depois de fazer as distinções pela via negativa, explicando o que não é a recepção da pena em Cristo, Turretini se aplica a fazer as distinções pela via positiva, afirmando aquilo que é a recepção da pena em Cristo:

"Mas, no tocante à participação de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásticos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justiça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus"2.

    Aqui Herman Bavink ilustra que aquilo que eu quero dizer quando afirmo que "não há uma fratura no ser de Cristo", e que por isso ele não pôde padecer a pena do pecado como sofre um condenado ou o diabo:

"Autoacusação, pesar, remorso e confissão pessoal de pecados não podem ocorrer no caso de Cristo e ele tampouco estava sujeito à morte espiritual, à inabilidade de fazer algum bem e à inclinação ao mal. Precisamente para ser capaz de levar os pecados de outros e fazer satisfação por eles, ele não podia ser um pecador. A “substituição de pessoas” que aconteceu entre Cristo e os que lhe pertencem não deve ser entendida em um sentido físico-panteísta, mas tem caráter legal: Cristo voluntariamente entrou na mesma relação com a lei e suas exigências em que estamos como resultado de nossa transgressão"3.

    Agora fazendo referência à teologia luterana, John Theodore Mueller, no "Dogmática Cristã" - que é o texto padrão para o ensino de Teologia Sistemática na formação de ministros da IELB -, afirma que a doutrina da expiação luterana confessa a imputação da culpa e da pena a Cristo, daí decorrendo o significado e o peso da pena aplicada a Cristo na Cruz. Muller também afirma a noção de "separação na Cruz", não implicando, não obstante, naquilo que pode ser chamado de "separação ontológica", mas sim no entendimento que afirma a pena sofrida cuja noção é modulada pela afirmação de que não há "desespero de salvação" em Cristo, enquadrando a teologia luterana na categoria daquelas que negam veementemente o arianismo ou o nestorianismo, tal como na teologia reformada.

    Segue o texto de Mueller:

"A agonia de Cristo de ver-se esquecido de Deus (MT 27.46), constituiu no padecimento da sua alma, da ira divina por causa dos pecados dos seres humanos, precisamente como se ele tivesse cometido as transgressões imputadas. Foi o padecimento das dores infernais (dolores infernales ), que consistem essencialmente na separação de Deus. [...]

    Com muita correção, nossos dogmáticos descrevem a agonia da desertio como sensus irae divinae propter peccata hominum imputa. É antiescriturístico atribuir desespero a Cristo (desesperatio) em sua angústia extrema, uma vez que desespero é iniquidade e, por tanto, não está em acordo com seu caráter não pecaminoso"4.

    Mueller é categórico em afirmar que Jesus sofreu em sua alma o senso da ira divina, como se ele fosse culpado pessoalmente pelos atos de transgressão contra Deus. Também há a presença da afirmação radical da separação de Deus. No entanto cabe uma modulação da noção de separação aqui, e essa modulação está em que Mueller confessa, junto com os dogmáticos, que não há desespero de salvação em Cristo. Ora, essa é a exata explicação que dá Turretini, embora o teólogo genebrino o faça de forma mais detalhada e Mueller de forma mais resumida. Em essência não há contraste nas afirmações, cabendo à explicação de Mueller o mesmo teor semântico do que vai explicado no texto de Turretini e mesmo naquilo que vai escrito no texto de Bavink aqui citado.

    E por fim, é evidente que a acusação de que a Teologia da Substituição Penal tanto nos dogmáticos representativos da escola reformada, como no dogmático da escola luterana, e com isso nas teologias representativas da fé reformada e luterana, desemboca em nestorianismo ou arianismo. Essas são especulações que repugnam a lógica teológica que extrai exatamente de uma leitura atenta as conclusões necessárias das premissas teológicas de tais escolas, tal como essas premissas foram abraçadas ao longo de mais de quatro séculos.

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[1] TURRETTINI, François Compêndio de Teologia Apologética, Vol II. Ed. Cultura Cristã, São Paulo-SP. 1ª Edição, 2011. p. 429

[2] Idem.

[3] BAVINK, Herman. Dogmática Reformada Vol. III. Editora Cultura Cristã, São Paulo-SP. 1ª Edição, 2012. p. 405

[4] MULLER, John Theodore - Dogmática Cristã. Editora Concórdia. Porto Alegre-Rs. 4ª Edição, 2004. p. 288, 289.

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