quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O Fundador Imperial

    Conta a narrativa da Escritura que Caim foi o primeiro filho do primeiro casal (Gn 4.1). Segundo a lei mosaica ele seria o primogênito da família, o herdeiro por excelência. Mas por certo desígnio da providência divina, a eleição caiu sobre Abel – curiosa disposição divina essa que em Gênesis parece, por graça ou gracejo, preterir os filhos mais velhos nos grandes empreendimentos de redenção e eleger os mais novos (com certas exceções) – e unido isso à não sensibilidade de Caim em relação ao plano divino acabou o enchendo de ódio (4.4-6). Devemos olhar para Caim e contemplar a calamidade de uma alma quebrada. Mesmo ali em seu estado de ódio ele ouvia a voz divina: Se, todavia, procederes mal, o pecado jaz à porta; e o seu desejo será contra ti, mas te cabe domina-lo (Gn 4.7.bss) A questão é que da trágica Queda nasce o primeiro assassinato que já desponta em sua versão mais cruel, ou seja, o fratricídio (assassinato de irmãos).

Narra Gênesis que após o assassinato de Abel Caim fugiu para leste do Éden, fugindo da face do Senhor desejando a morte pelo peso de uma culpa que ele não pôde suportar, e ainda assim fundou um modelo de vida criando a primeira cidade do mundo. Sua relação com a terra, ao que parece, o obrigava a isso, diferentemente do modo peregrino de vida exigida por uma atividade pastoril incipiente. Aqui não precisamos cair na tolice de achar cidades algo essencialmente mal, mas a princípio, para o cumprimento do desígnio divino de espalhar a humanidade sobre a terra, isso parecia ser um empecilho. Se olharmos firmemente para Gn 4 em diante veremos que da descendência de Caim pareceu surgir todo tipo de técnica industrial, musical, equitativa e mesmo bélica, ao passo que a descendência de Sete, Enos, teve o feito notável de fazer com que em seus dias se começasse a invocar o nome do Senhor. Aparentemente enquanto que a descendência de Caim se aperfeiçoou na mundanidade, a descendência de Sete, da qual veio Noé, se aperfeiçoou na espiritualidade.

Como dissemos acima, em Caim e Abel se dividem dois povos, e de Caim seguiriam os descendentes espirituais feridos na consciência (Gn 3.15) que fariam do poder do mundo o fim almejado, ao passo que do legado espiritual de Abel (e não físico) seguiriam os descendentes cuja marca é a peregrinação espiritual e a busca por Deus, fim absoluto posto a todo homem neste mundo e nesta vida. E entendamos que essa leitura simbólica de Gn 4 é pertinente aos interesses do Evangelho, não para criar a ilusão de uma satanização das cidades do mundo, pois visualizamos uma cidade que desce dos céus, (Ap 21.2-4), e nem para demonizarmos as ciências, mas sim para nos atentarmos para o sentido espiritual do perigo de quem usa da pátria terrena a ponto de esquecer da pátria celeste, já que nos é ensinado a nos servirmos do mundo como se dele não usássemos (1Co 7.31), o que nos previne de fazermos do transitório o permanente e do relativo o absoluto, deformando a nossa alma e nos esquecendo de Deus.

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