quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O Devorador do Pó

  Uma das três maldições que se seguiram à transgressão de Eva, de Adão e da Serpente foi aquela na qual Deus condenou a serpente a tanto rastejar sobre o seu ventre como a comer por toda a sua vida o pó da terra. Essas figuras apresentadas em Gn 3 serviram de material especulativo para os cristãos ao longo dos séculos, e no contexto da igreja nascente, nos primeiros séculos, em que a interpretação alegórica (ou mística) dos textos sagrados era algo muito comum, muita reflexão criativa a respeito da narrativa de Gênesis ganhou espaço entre os cristãos para que, por meio de interpretação dessas figuras, ensinos morais e espirituais se tornassem padrão de orientação para os homens que buscavam uma vida ajustada à vontade de Deus, ajudando-os assim a compreender a realidade circundante na qual estavam inseridos e pela qual, de certa forma, eles estavam determinados.

Entre essas interpretações, uma muito interessante que busca colher o significado da maldição da serpente, especificamente no seu rastejar sobre o ventre e no comer o pó por todos os dias. A interpretação se funda na conhecida maldição que entende ser a soberba, o orgulho, a mãe de todos os pecados. O orgulho doentio da serpente foi o de se por a rivalizar com Deus, querendo, semelhantemente à ilusão que propôs para Eva, ser deus para si mesmo. O querer ser Deus para si mesmo a serpente fez de si mesma o centro do seu mundo. Para ilustrar essa questão, a acusação de Paulo contra os inimigos da Cruz em Fp 3.19 é que esses tem por deus o seu próprio ventre, sendo contrários à Cruz e ao amor de Cristo. Não seria esses homens aqueles que rastejam sobre o seu ventre? Não seriam esses aqueles que teriam o seu umbigo como o centro do mundo? A analogia é criativa, pois ela ilustra o fato de que rastejar sobre si, se perder sobre si mesmo, é necessariamente o destino do homem sem Deus.

Uma segunda figura da narrativa da maldição da serpente é aquela que afirma que a sua condenação seria comer o pó da terra. Irineu de Lyon, cristão do século (130-207 d.C.), foi um dos primeiros a especular sobre a inveja da serpente sobre o homem que ele disse ser cumulado de bens por Deus. Assim, nessa inveja arruinou a si mesmo ao buscar arrasar o homem feito à semelhança de Deus. Essa, podemos dizer, foi a primeira vez que a serpente comeu o pó da terra, já que o homem viera do pó, ou melhor, é pó (Gn 3.19). Assim o demônio seria condenado a buscar o pó, ou melhor, a destruição do homem por todo o tempo que vivesse, já que o homem, por uma justa ira de Deus, foi deixado ao poder do reino das trevas (Ef 2.1-10), sendo alimento da serpente, pois essa só vive para alimentar esse seu pecado. Mas a serpente foi obrigada ao ódio, já que na redenção a destruição da raça não logrou êxito, pois ao se fazer carne Cristo nos conquistou a salvação na Cruz, e ao buscar comer o pó da carne de Cristo, ela fez jus à própria condenação, ao mesmo tempo em que Deus ali nos deu a salvação.

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