quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Abel e o Sinal da Graça

    Quando afirmamos que a humanidade foi abandonada por um justo juízo ao poder das trevas, tal afirmação só pode vir acompanhada com as mais firmes e duras aspas, e isso é já claro, como dissemos mais acima na penúltima devocional, em Gn 3 onde Deus promete uma descendência humana vencedora contra a descendência, também humana, da serpente. Mas avançando para além do primeiro casal vemos já em Abel um sinal claro e concreto da esperança, além ficar evidente no mesmo Abel que a relação entre a humanidade e Deus não havia padecido ainda de uma brutal e completa ruptura, como se esperaria da exata pena merecida pela transgressão do primeiro casal. Abel assim é, mesmo que alheio à técnica da oração que haveria de ser aplicada na época Enos, o neto de Adão, a mensagem da comunicabilidade divina ao homem, comunicabilidade responsável por transmitir graça e misericórdia. Abel é um sinal da fidelidade divina presente apesar da infidelidade humana.

    Abel surge na narrativa de Gênesis como um símbolo que concentra significados importantes. Seu nome (הָבֶל = hāvel) significa vapor, sopro e como uma névoa que logo se dissipa com o calor do sol assim foi a brevidade da sua vida, ceifada em função da inveja assassina do seu irmão. Lamento semelhante é possível fazer a respeito do tempo da vida de Cristo, pois: E quem pode falar dos seus descendentes? Pois ele foi ceifado da terra dos viventes (Is 53.8b), versículo que indica a morte das possibilidades ocasionada por uma partida prematura. Abel é símbolo do bem que padece. Mas também Abel simboliza o espírito da profecia, pois levou diante do Senhor as primícias do rebanho e gordura deste, ao passo que, sendo lavrador, Caim trouxe uma oferta dos primeiros frutos da terra. Mas Abel antecipa nesse ato, ao qual Caim não foi sensível, todo sentido do sacrifício e da expiação de pecados que seriam realizados por Cristo. Também vemos aqui a separação espiritual de dois tipos de povos, o povo da terra simbolizado por Caim e o povo peregrino sinalizado por Abel.

Sobre esses dois últimos elementos há muito o que dizer, e se analisarmos bem Abel e Caim fazem o par dualista do qual seguem os dualismo entre Deus e a serpente, a morte a e vida, o Egito e Israel. Sendo constituído de povos ligados à terra, parece que a princípio a Escritura abomina aqueles que constroem impérios – como veremos mais adiante –, ao passo que elege um povo pastoril ligado à prática de peregrinação (Abraão, Isaque e Jacó), prática que é incompatível com a posse de terra. Vemos essa mentalidade ainda em Gênesis, onde os egípcios, o povo da serpente, império agrícola cujo exercício de poder foi anti-divino, abominam pastores (Gn 43.32), ou os povos peregrinos. Nesse sentido é interessante que a Escritura defina os cristãos como peregrinos e forasteiros (1Pe 2.11), povo que tem por modelo a Jesus, alguém que não tinha onde reclinar a cabeça, ao contrários dos pássaros e raposas que possuem seus ninhos e covis (Lc 9.58). A questão é que a espiritualidade do Filho de Deus evidenciada por Abel abraça a liberdade em relação ao mundo, sendo sensível à voz do Espírito; e não sendo de forma fundamental preso à terra, faz com que a sua alma se desprenda deste éon (século), pelo Espírito, em direção à eternidade.

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